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ENSAIO 01: CHEIRO DE MAÇÃ

Atualizado: 14 de ago.



Este é um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, cada ensaio é um capítulo, e este é o primeiro.


Imagine a seguinte cena, você sai do seu trabalho no fim de tarde e encontra um amigo que você não vê há anos, e aí você pergunta como estão as coisas ou relembra alguma história, o seu amigo se empolga e aí a conversa vira um happy hour, que segue para um restaurante, estica para um bar, atravessa a madrugada adentro e termina de manhã na beira da praia em assuntos que vem e vão; lembranças pessoais e curiosidades aleatórias, história e geopolítica de esquina, sabedoria e filosofia de boteco, memórias que se atropelam e lembranças que se conectam.


Este encontro já começou e eu não vou parar de falar tão cedo.


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01/02/2022


CHEIRO DE MAÇÃ


A morte tem cheiro de maçã e a vida é pular dentro de uma roda de facas.


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Existe um ditado relativamente conhecido e definitivamente interessante: se você quer respostas diferentes, mude as suas perguntas.


Diz muito sobre teimosia e mais ainda sobre maçãs.

E mais ainda, sobre hospitais.


Quando se trabalha para um hospital a morte é apenas mais um dos fatores da rotina diária e quase nunca é o assunto obrigatório, não por desprezo, eu chamaria de desmistificação.


Muitas vezes a morte passa sorrindo silenciosa na forma de alívio pelo fim de uma luta perdida contra o câncer e no sentido contrário a vida passa chorando aos berros na forma de uma criança recém-nascida ainda querendo voltar para a barriga da mãe, nem sempre há revolta pela perda de uma e nem sempre se comemora o nascimento ou a preservação de outra, há mais para perder e muitas outras a preservar e um dia inteiro (ou noite, ou madrugada) pela frente.


Se a morte é parte da rotina a vida todos os dias te dá sempre uma nova oportunidade de agradecer por ela, muitas vezes de maneiras absurdamente inesperadas.



Em uma dessas oportunidades eu fiquei meses acompanhando a movimentação do centro cirúrgico para um relatório de adequação e reforma e cada cirurgia mostrava uma nova necessidade ou ao menos um novo rearranjo no espaço.


Eu me posicionava onde era permitido, geralmente um canto longe do alcance da visão de todos mas todos ao alcance da minha e ficava quietinho, com uma câmera na mão e testemunha silenciosa das dificuldades e desafios de uma operação.


Esta não seria diferente e a urgência era visível de longe, um senhor de 80 anos com uma distensão enorme no abdômen parecendo uma Grávida de Taubaté, já anestesiado e inconscientemente esperando.


Pouco se sabia sobre ele, o senhor Alberto* morava sozinho em um sítio e era ajudado por vizinhos, se alimentava mal e reclamava constantemente de dores do estômago e gases no intestino e, pelo tamanho da distensão, ninguém discordaria.


E engraçado notar ou imaginar (ou lembrar), mas toda pessoa anestesiada parece estar sempre ansiosa para acordar mas não o senhor Alberto, muito bem anestesiado pelas mãos da nossa querida anestesista cujo apelido era Doutora Soninho, logo eu diria ter ouvido ele roncar com todos posicionados e mesas preparadas, dois cirurgiões ao redor e mais duas enfermeiras instrumentadoras e uma enfermeira auxiliar esperando a primeira decisão, nestes casos se resumindo onde, como e quando fazer a primeira incisão.


Foi decidido então realizar um corte transversal logo acima da parte mais distendida, pinçar estômago e intestino e então visualizar a situação da parte interna da cavidade abdominal e a partir disto realizar o procedimento mais recomendado de acordo.


Corte feito, um balão orgânico saltou para fora lentamente (parecendo uma bexiga de gás feita de pele de intestino) e o cirurgião então rapidamente sugeriu realizar uma punção de no máximo um milímetro e aumentar conforme a pressão diminuiria, esperar o gás vazar e líquido escorrer, realizar a primeira sucção e limpeza e só então realizar a operação de desobstrução de fato.


Punção feita e um barulho seco igual (sim) um balão estourando, e fechei meus olhos por reflexo.


Quando dei por mim no exato segundo seguinte vi que ele havia explodido.


O velho simplesmente explodiu.


E antes de se ouvir o primeiro palavrão ou grito a sala estava infestada de um cheiro indescritível de sangue, fezes, pus e maçã. Sangue e fezes são odores comuns ou esperados em um centro cirúrgico, pus tanto quanto, mas maçã era a primeira vez.


Torta de maçã, vinagre de maçã, maçã de maçã, um cheiro de maçã forte o suficiente para se destacar.


Uma bomba de fermentação, um homem-bomba de maçã, um maçãmano.


Se você por acaso viu o filme "Three Kings" de 1999 e lembra da cena da vaca, você pode imaginar mais ou menos como foi, troque o diálogo “It’s all cow” por “It’s all maçã” e a cena fica completa na sua mente.


Esse dia redefiniu o conceito de "estou rindo, mas é de nervoso", as enfermeiras literalmente gargalharam e no segundo seguinte caíram no choro e no próximo segundo em meio a risos nervosos, palavrões e uma sequência de alcance isto e aquilo tudo ficou claro na medida do possível. O estouro, a hemorragia interna e o tamanho da infecção venceriam esta batalha, não houve tempo para transfusão e reanimação e mesmo que houvesse a porção de intestino afetada impediria qualquer chance de recuperação do senhor Alberto e ter um mínimo de qualidade de vida posterior.


Provavelmente era uma manhã de uma segunda-feira 12 qualquer mas não falou muito para se tornar uma completa noite de sexta-feira 13.


Sim eu estava filmando e sim existe vídeo, mas também existe ética profissional e por isto você nunca assistirá.


A sala foi interditada para limpeza e descontaminação total e dias depois com o laudo finalizado fomos entender: anos de uma obstrução parcial intestinal sem tratamento e anos de rejeição alimentar até não conseguir comer mais nada sem vomitar além de maçã.


Como não haviam filhos e nem irmãos convocamos um vizinho para reconhecer e reclamar o corpo e conseguimos encomendar o seu velório e enterro com ajuda de uma das inúmeras vaquinhas criadas para situações parecidas com as dele.


Só sei que ele explodiu e desde então para mim a morte tem cheiro de maçã.


Fiquei meses (ou anos, não lembro) sem chegar perto de uma, sentir cheiro de maçã e pensar em sangue e sentir cheiro de sangue e pensar em maçã se tornou rotina, uma espécie de vampirismo involuntário e nem um pouco prazeroso.



Quando enfim resolvi arriscar comer maçã novamente o cheiro continuava o mesmo, de morte, mas o gosto era apenas e obviamente maçã. Não que eu saiba o gosto da morte, não que eu queira saber o gosto da morte, o barulho, o susto e o cheiro já foram lições de vida o suficiente.



Mais alguns meses depois (ou anos, o tempo se torna uma abstração em lembranças deste tipo) em um dia sem pensar apenas peguei uma maçã após o almoço, cortei e comi e ainda no mesmo dia entendi, eu continuaria sentindo o cheiro da morte enquanto eu continuasse a me perguntar o motivo dela cheirar assim.


E então a ficha caiu, o senhor Alberto vivia comigo em uma versão de baixo orçamento do filme "O Sexto Sentido" e eu naturalizei a presença dele em um objeto, infelizmente de comer, onde eu projetava perguntas feitas o tempo todo sem querer saber as respostas. Na psicologia isto se definiria de certa forma como um totem, quando as perguntas não respondidas adquirem forma e personalidade e se tornam símbolos religiosos.


Mas estou sendo bondoso comigo mesmo, as minhas perguntas beiravam a psicologia infantil como "por que as pessoas sofrem?" e "por que algumas mortes são tão horríveis?".


Mudei as perguntas para "por que maçã verde é verde?" e "por que a maçã fuji é a melhor de todas?" e pronto, a vida voltou a ser apenas vida e as maçãs apenas maçãs, as pseudo-frutas mais frutas de todas representando juventude no paganismo, amor e intriga na mitologia grega, pecado na mitologia judaico-cristã, dor de cabeça para físicos adeptos da lei da gravidade, veneno para a Branca de Neve e, mesmo mordidas, encarecem os preços de laptops e smartphones.



E claro, até algumas linhas atrás, serviram de metáfora para a morte na minha pobre e particular mitologia pessoal.


Apesar do impacto da cena e a insistência da lembrança não foi exatamente uma experiência traumática, em hospital estamos acostumados até mesmo a brincar a respeito porque se a vida é um sopro e a morte apenas uma lição de vida como qualquer outra, um velho com uma barriga de balão nos ensinou isto na marra.


Eu tive o privilégio de ter uma infância pobre e milionária cuja maior riqueza era pegar maçã verde direto da árvore literalmente na janela de casa, cortar com faca igual qualquer caipira do interior faz e comer com sal como qualquer pessoa com amor à vida arriscaria provar pelo menos uma vez.


E de qualquer forma eu não sei qual cheiro a morte tem ou terá para você mas para mim a morte tem cheiro de maçã e comer uma é lembrança constante do nosso dever de sermos gratos por estarmos vivos e claro, ainda é a minha fruta favorita (possivelmente agora mais ainda) embora o senhor Alberto tenha provado em número e grau que nem sempre uma maçã por dia significa saúde e alegria.


A vida surge e segue, a velhice vem, a morte chega e o ciclo recomeça e em um hospital muitas vezes, como escrevi linhas atrás, ambas ocorrem no mesmo corredor e no mesmo momento.



Eu jamais saberia dizer qual seria a melhor forma de morrer mas hoje eu escolheria morrer sem saber, chapado de anestesia e esperando voltar para casa no mesmo dia e acordando no céu. Ou inferno, ainda não sei dizer também qual seria a melhor opção de morada eterna e nem para qual sou candidato.


Então se morrer sem saber é uma forma justa de morrer, o Senhor Alberto justamente se foi.


Descanse em paz, que a sua vida tenha sido menos atribulada que a sua partida.


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Por falar em morte, lidamos muito com ela nestes últimos anos e 2020 ensinou sobre o medo dela na marra também mas mesmo assim uma lição que todos tiveram e poucos aprenderam, e provou ser o ano marcado por muito a se falar e pouco a se dizer e o por mostrar quão longe a humanidade está daquilo que ela pensa ser.


Em 2020 o mundo ficou um pouco menos florido e com certeza muito menos musical, perdemos o Bill Withers, Ennio Morricone, Toots Hibbert, Neil Peart, Andy Gill, Kenny Rogers, Florian Schneider, Eddie Van Halen e Richard Lewis Spencer, seguramente o músico mais injustiçado de todos os tempos, ao lado do seu baterista Gregory C. Coleman.


E como se fosse pouco perdemos também dois grandes Josés.


O Louro, a única coisa legal na Rede Globo nos últimos 30 anos e o Mojica Marins, o nosso amado e odiado (pelos mesmos motivos) Zé do Caixão, com toda certeza a morte mais irônica daquele ano. O nosso Nosferatu passou a vida inteira nos amaldiçoando e agora não sabemos se ele estava morto antes e vivo agora ou vice-versa, um verdadeiro Gato Preto de Schrödinger.


Max von Sydow também se foi aos 90 anos, o ator capaz de jogar xadrez com a morte como um cavaleiro, ressuscitar após três dias como Jesus e nas horas vagas bater boca com o demônio em pessoa como um exorcista.


E por falar nela, a dona morte, "The Life of Death" é o curta-metragem mais lindo que eu já assisti: um dia a morte se apaixonou pela vida.


Um dia a vida correspondeu.


O amor mais proibido de todos, quando o platonismo é a única opção e pela primeira vez (pelo menos na ficção) a morte não quis cumprir o seu papel.


Mas a vida quis e você deveria procurar no YouTube e assistir.


É irônico a morte tomar e manter para si o maior desejo dos vivos, a eternidade, e mais irônico ainda imaginar ela abrir mão do maior poder de todos, o de tirar vidas, por um pouco mais da própria.


Seria a morte a própria eternidade e poderia a eternidade nos desejar e nos invejar para todo o sempre?


Em uma entrevista a criadora do curta, Marsha Onderstijn, deixa claro:


- A morte acontece ao nosso redor na natureza, o tempo todo. Para mim, pessoalmente, há muita aceitação da morte na natureza, porque parece ser simplesmente parte da vida.


Certeira a menina.


Certeira também é a série "AfterLife", do sempre certeiro Rick Gervais, a começar pelo nome espertíssimo e pelo enredo, em suas próprias palavras: Homem pensa em suicídio o tempo todo porque sua esposa morreu de câncer, e é ainda mais divertido que isto.


Definitivamente é, uma esposa já falecida ensinando o viúvo como viver, uma prostituta cobrando para fazer faxina, um carteiro acostumado a ler as suas cartas, uma cadela chamada Brandy e claro, os colegas de trabalho levando a vida nos ombros.


Aprender a viver, o Romão** de alguma jeito sabe e ensina todos os dias, conhecido e sempre lembrado em Florianópolis por fazer exatamente o contrário e por todos os que já perderam um ônibus ou chegaram atrasados em casa, trabalho ou aula esperando ele enfim pular dentro de uma roda de facas.


Quem já viveu o centro da cidade perdeu (muito) tempo de vida esperando este momento e sim, ele (quase) sempre pula e sempre sai (meio) vivo do outro lado, às vezes dá errado e ele sai arranhado ou auto-esfaqueado, mas sempre sai.



E no dia seguinte lá está ele de novo pronto para outra, encara a morte de frente e antes mesmo de terminar já deu as costas para ela.



Ele poderia desafiar a Dona Foice de outras formas como jogar xadrez igual o Max Von Sidow mas não, tinha de ser uma roda de facas. Se a vida para nós é todos os dias disputar um simples par ou ímpar pelo direito de viver mais um dia, Romão foi direito para o level hard.


Quando não está desafiando a paciência do além, Romão desafia a nossa falando, falando e falando, ao nível de ser promovido à ditado popular local quando alguém te enrola ou parece estar mentindo: fala mais que o homem do arco da faca.


Ou "fala maix qui o home do arco da faca" como diria o manezinho ou para ser mais exato "falamaixquiohomedoarcodafaca" se você já está acostumado com a velocidade do dialeto local.


Se você consegue entrar para o folclore urbano a ponto de se tornar um ditado popular por pessoas que nem sequer sabem o seu nome e quase fazendo mas enrolando para fazer aquilo que você prometeu fazer, você é um vencedor.


Level hard por level hard eu já joguei capoeira com ele e claro, apanhei, começando com um chute na cara muito bem recebido, uma lembrança vívida de sorrir como todo capoeirista sorri quando toma chute na cara e então tomar uma rasteira como o destino e a distração do chute inevitavelmente trouxeram de troco.


Não se deve perguntar os motivos pelo qual um homem apanha e sorri e outro decide levar a vida pulando dentro de uma roda de facas, talvez a resposta não esteja neles mas nos olhos perdidos de quem tenta ler a mente alheia e mais ainda no olhar de quem perde minutos ou mesmo horas para ver alguém completar uma loucura dessas e depois perde outras tantas horas julgando.


Dos três sentimentos mais propagados e menos compreendidos nos dias de hoje, empatia, gratidão e liberdade, Romão é uma lição de empatia.


Empatia não é sobre quem nós nos identificamos ou conhecemos ou nos relacionamos, a empatia começa exatamente quando nos vemos obrigados a lidar com uma vida na qual não sabemos nada a respeito e muito menos qual vida ela levou até o dia em que soubemos sobre a sua existência.


Tudo o que vemos, pensamos e julgamos sobre os outros mostra, diz e prova um pouco sobre nós e se a morte é inevitável viver é uma opção e nem uma morte é em vão enquanto todas as vidas tiverem algo a nos ensinar.


Em outras palavras morrer não é uma escolha, mas viver sim.


Talvez o falecido senhor Alberto e o vivíssimo Romão sejam algo além no meio dos muitos desafortunados anônimos e malucos distraindo nosso caminho e talvez a vida não passe de uma roda cheia de faquinhas de cortar maçã e nós pulamos por dentro dela todos os dias mesmo sem perceber.


Se a minha metáfora estiver certa, eu aqui escrevendo e você aí lendo somos pessoas de sorte, e somos campeões, enrolando ou procrastinando ou postergando, mas campeões pois a morte pode esperar, a vida (a única e original) traz problemas para resolver primeiro, já dizia Confúcio.


E se é inevitável desafiar a morte também pode se tornar fonte de renda como o próprio Romão ilustra bem, ou por um precinho camarada e irresistível como pular de paraquedas ou surfar.



E se por acaso meu texto lhe pareceu mórbido, mórbido é você a ponto de ficar tanto tempo sem falar com uma pessoa e daí mandar uma mensagem perguntando se ela está viva.


Cruz-credo, eu hein.


Até mesmo porque se a morte é doce como maçã, a vida pode ser azeda como limão.


* Nomes de mortos em histórias narradas deveriam ser preservados levando em conta o fato deles não estarem mais presentes para contar a sua versão. Todos os mortos em hospitais são Alberto, Roberto e Norberto. E de vez em quando um Gualberto quando a inspiração bate e o humor permite.


** Sempre chamei o Romão de Romão, se é nome ou apelido ou nenhum destes ainda estou para confirmar.


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