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ENSAIO 02: CHEIRO DE LIMÃO

Atualizado: 2 de fev. de 2024



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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14/02/2022


CHEIRO DE LIMÃO


Rir sozinho da própria piada pode ser fatal, o maior mérito da chato é deixar saudades quando vai embora, o azedo vai salvar a sua vida e o amargo vai tornar ela melhor.


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Por falar em morte de acordo com a Wikipedia Crisipo de Solos, ou Crisipo de Soli, foi um filósofo grego natural da cidade de Soli na Grécia e terceiro diretor da escola estoica, responsável por expandir as doutrinas criadas pelo também filósofo Zenão de Cítio, sendo assim considerado até hoje o segundo fundador do Estoicismo, doutrina com base no conceito da virtude como única e verdadeira detentora do bem e todo o resto, saúde, prazer e riqueza, são consequências das ações do indivíduo.


Crisipo escrevia compulsivamente as suas ideias e assumia os dois lados em qualquer discussão onde se envolvesse e, tal qual o personagem principal do filme "Beleza Americana", um belo dia Crisipo acordou no último dia da sua vida.


Segundo a lenda (ou mitologia, tentando ser coerente) e dependendo do relato ouvido na época Crisipo estava nos jogos olímpicos quando morreu ou de tanto beber ou de tanto rir, possivelmente ambos. Alguns relatam terem visto ele bebendo vinho até tombar e cair e morrer, mas também conta-se que ele apontou para um burro comendo figo e gritou "agora deem vinho para este burro" quando começou a rir e só parou quando morreu, de rir.


Assim como na morte a mitologia grega é uma grande e eterna sucessões de "se" e o mesmo vale para o demasiado e inconvenientemente humano Crisipo, que de deus ou semi-deus não teve nada.



Se o rigor mortis manteve um sorrisinho na sua face e até mesmo se rigor mortis não significaria de fato rir até morrer e se Sísifo rolava pedras acima por toda eternidade, Crisipo foi o mítico tio do pavê original, rindo sozinho até morrer uma morte conhecida pelo nome de "hilaridade fatal" e assim como uma boa piada, se explicar o termo estraga.


Não saberei dizer até onde esta história é fatual e a internet tem pouca informação sobre a Grécia Antiga confirmada pelos gregos antigos, mas me pergunto se choraram no seu enterro ou apenas riram por educação da sua última piada, a qual teve graça apenas para ele e, independente da morte ser ou não engraçada (e se no fim todos morreremos sozinhos), morrer rindo parece ser uma boa opção, iguais as vítimas da piada mortal do Monty Python, a qual vou colar aqui a versão alemã e espero que você não traduza porque quero você vivo até o final deste livro:


"Wenn ist das Nunstück git und Slotermeyer? Ja! Beiherhund das Oder die Flipperwaldt gersput!"


Mas me parece fato consumado: rir sozinho da própria piada é atingir o nirvana do humor e morrer assim é entrar para a história sendo o Buda risonho morto e reencarnado ao mesmo tempo.


Crisipo definitivamente riu por último, rindo desta para uma melhor.


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Por falar em morrer de rir, por muito anos acompanhei os enfermeiros e enfermeiras no hospital e ouvia as suas queixas, necessidades e dificuldades. E para entender e me relacionar com eles deveria também acompanhar toda as suas jornadas de trabalho, as quais eu chamava de missões.


E ela começava cedo.


Em uma destas missões durante uma semana inteira acompanhei o trabalho do João*, um dos nossos profissionais mais experientes, mas alcóolatra e em vias de ser afastado do emprego.


Um dos primeiros sinais de que um profissional de um hospital está com problemas pessoais é ele pedir para fazer horas extras. Ninguém pede horas a mais em um ambiente de trabalho onde todo mundo já é sobrecarregado delas e já trabalha em pelo menos dois turnos e muitas vezes em dois hospitais diferentes.


Se além de toda esta carga a pessoa pede mais horas o sinal vermelho acende, a investigação começa e logo o drama pessoal se revela.


Como no caso da Júlia**, sempre de cabelos molhados e vista em todos os turnos circulando com uma mochila destas de camping absurdamente grande (incluindo um travesseiro em cima) nas costas e sempre aparecia do nada respondendo que ou iria viajar ou dormir na casa de uma amiga, ou então estava chegando de viagem vindo direto trabalhar, sem ninguém perguntar nada a respeito.


Outro sinal claro de problemas pessoais é a pessoa responder perguntas feitas por ninguém, a famosa voz da culpa no inconsciente gritando através da boca. Ainda mais quando você vê esta pessoa no turno da manhã dizendo estar pronta para viajar de tarde e no mesmo dia de tarde diz ter recém chegado de viagem de manhã.


Sinal vermelho e alarme ativados.


Apesar de ser uma ótima enfermeira, gentil, aplicada e eficiente, era alvo constante de reclamações das colegas por sumir no meio do turno e voltar repentinamente com os cabelos molhados misteriosamente. E com a mochila nas costas e o travesseiro em cima.


Decidi começar a investigar e em dois dias descobri onde ela dormia escondida e as suas idas para casa somente no meio da manhã ou da tarde para tomar banho, pegar roupas limpas e comida, trocar de travesseiro ("viajar de ônibus dói o pescoço") e voltar trabalhar.


Júlia fugia de casa todos os dias e dormia escondida acampando no meio das obras da reforma no terceiro andar ou nos ambulatórios fingindo estar de plantão e precisar de uma cochilada.


Em uma destas "viagens" vi ela saindo do hospital e perguntei se precisava de carona até a rodoviária quando me respondeu estar na verdade voltando de viagem e então aproveitei a brecha nem um pouco aberta e perguntei:


- Por que você dorme no hospital se o seu apartamento é aqui perto?


Aí o choro começou e levei ela para dar uma volta de carro.


Casada a menos de um ano, morando junto a menos de nove meses, apanhando desde o terceiro mês morando juntos.


Veio com o marido para Florianópolis quando ele recebeu uma proposta a qual na verdade era apenas um processo seletivo sem garantia de contratação e assim começou o calvário dele de entregar currículos para encher gavetas de recepcionistas e o dela de jornadas triplas e horas extras sem fim, acampamentos irregulares e viagens que nunca existiram para vencer as contas do mês e escapar das agressões de um marido desempregado antes de estar empregado e sem vocação para a perseverança, resiliência e respeito necessários em uma vida em conjunto.


Como ela o amava a esperança é que estando empregado o amor voltaria e o casamento seguiria em frente e enquanto esperava tolerou viver no pior de dois mundos, unindo o inútil ao desagradável de ter de sustentar uma relação falida e acampar ilegalmente almoçando pão e jantando bolacha mesmo pagando um apartamento para morar.


No encaminhamento psicológico a nossa psicóloga rainha dos coices certeiros começou a reunião alertando:


- Nenhum casamento com agressão no primeiro ano comemora anos de casados com menos agressões, e nenhuma agressão merece segunda chance. Cada frustração pessoal dele, e muitas virão, ele vai descontar em você porque já sabe que pode fazer isso com você.


Fizemos outra reunião dela com as colegas e sem falar da sua situação sugeri elas ajudarem achando outra pessoa para dividir apartamento e no mês seguinte a Júlia se mudou aos poucos e sem falar com o marido, que não percebeu o apartamento se esvaziar mesmo passando os dias desocupado dentro de casa.


Maridos jogadores de videogame parecem viver num mundo paralelo e sem perceber a realidade ao redor (e percebem menos ainda a realidade de outra pessoa) e depois da mudança Júlia pediu o divórcio e então o agora ex-marido sem condições de se manter voltou para cidade natal de ambos com uma mão na frente, outra atrás, currículo na pasta e rabo entre as pernas.


Júlia venceu, com horas extras além do necessário, umas boas noites de sono perdidas e uma dor no coração de quem foi obrigada a por os pés no chão e a mochila nas costas, mas venceu.



Ou como quando o Arnaldo***, um dos nossos melhores vigias, começou a pedir para fazer turnos de 18 e 36 horas e a aparecer para trabalhar nas folgas mesmo sabendo ser proibido.


Algumas semanas antes Arnaldo ainda era entregador de pizza de noite e vigia de madrugada e então dormia o dia todo, nunca faltou em nenhum dia de trabalho, nenhuma pizza nunca foi entregue fria ou revirada de moto empinada até onde sabemos e no hospital nunca tirou um cochilo sequer.


Mas Arnaldo era casado, trabalhava em dois empregos e ainda fazia bicos como pedreiro nas folgas para pagar a faculdade de secretariado da esposa, que um dia acordou dizendo estar grávida e querendo abortar porque segundo suas palavras queria ter uma carreira e o aborto "numa clínica de uma ginecologista mulher chique de respeito" iria custar quatro mil e oitocentos reais.


Casaram jovens e cedo demais, se conheceram na igreja que ambos frequentavam, perderam a virgindade juntos e logo estavam morando no mesmo teto, um edícula alugada atrás da casa de um de seus parentes.


Sem patrimônio e sem poupança Arnaldo vendeu a moto, deu o dinheiro para a esposa, pediu demissão da pizzaria e foi para o hospital.


No outro dia de manhã encontrou a casa vazia e revirada, chegou a ligar para a esposa pensando ter sido um assalto mas descobriu pelo seu tio que ela havia ido embora de madrugada e levou junto os dois travesseiros do casal, roupa de cama, televisão, liquidificador e micro-ondas e na semana seguinte descobriu que ela havia comprado uma moto e roupas novas e estava morando com o namorado novo.


Arnaldo passou a pegar dois ônibus para ir e voltar e não sabia responder se ela realmente esteve grávida e se esteve se o filho seria dele mesmo porque durante a semana eles mal se viam de manhã e nos fins de semana ou ele também trabalhava ou ela dizia ter aulas e provas do curso para fazer.


Algumas semanas depois soube que a agora ex-esposa havia ido embora pois, em suas palavras "tinha mais o que fazer da vida além de comer pizza de graça todo dia".


Arnaldo ganhava uma pizza todo fim de turno e sua esposa comia quente de noite após as aulas e ele comia fria de manhã após o trabalho e antes de ir dormir.


Demos travesseiros de presente e horas extras, fizemos vaquinha para um novo micro-ondas e em um ano Arnaldo venceu também, deu entrada numa moto não tão nova mas para uma vida não tão alegre já era alguma coisa.



Na situação do João o problema não só era conjugal mas também familiar. Órfão de pai e mãe, foi criado por um tio que o levou a uma vida de inadequação e solidão extremos, aliada a falta de sentimento de propósito no trabalho os quais geralmente levam a algum vício, pedia horas a mais para bancar dívidas de um alcoolismo um tanto quanto irônico: se manteve um homem forte, prestativo e plenamente capaz de qualquer auxílio físico, mecânico, de deslocamento e até mesmo atendimento, mas completamente incapacitado na fala.


Chegamos a pensar que ele havia sofrido um derrame ou princípio de AVC sem saber até quando um colega desavisado tomou um gole da garrafa de água dele e cuspiu vodca.


A denúncia foi feita e a investigação e o acompanhamento disfarçado eram necessários.


João era querido e estimado por definitivamente todos e de tão prestativo seu nome era solicitado até mesmo quando estivesse de folga, mas alcoolismo é uma linha acima do limite em um ambiente profissional, ainda mais em um hospital.


O meu disfarce foi alegar um processo de avaliação da qualidade das macas e a estrutura de circulação dos doentes entre os ambulatórios e salas de internação e exames. Enfermeiros homens possuem uma função pesada e muitas vezes solitária de carregar a transportar acamados e anestesiados por corredores e andares e, sendo bem sincero, eu mesmo precisaria de umas boas doses de cachaça pra encarar uma rotina destas e ainda ser involuntariamente primo, tio, irmão, psicólogo e amigo de parentes e doentes por dias ou semanas seguidos.


Salas, ambulatórios, dormitórios, corredores, escadas, elevadores.

Macas, pacientes, acompanhantes, médicos, enfermeiros, analistas.


Deixava um paciente, buscava outro.

Deixava este, trazia aquele.


Mas nesta semana em questão ele tinha companhia, eu, talvez não a melhor de todas mas com anos de boas intenções para por em prática e dialogar uma possível saída temporária e tratamento.


E aí o João, com seu sexto sentido de bêbado de bar de sinuca, passou a ficar mudo e trabalhar em silêncio.


Durante alguns dias seguidos havia uma bateria de exames na área de internação intermediária (onde ficavam pacientes em recuperação pós-cirúrgica e ainda em observação) quando acompanhamos um casal, o marido na sua terceira ou quarta cirurgia de safena e uma parada respiratória no histórico e a esposa já com um terço na mão esquerda.


Com dificuldade de falar e reagir o homem nunca me cumprimentou, mas de certa forma dominou a minha atenção. Na verdade eu diria ter dominado a sua atenção e de tanto ser encarado passei a encarar ele de volta sem perceber.


Estava sempre acordado e consciente e me olhando praticamente sem piscar e sem menção de que iria falar ou perguntar algo, mas sempre com uma expressão de desconforto indisfarçável no olhar parecendo sempre dizer: você não deveria estar aqui.


E em retorno o meu olhar provavelmente dizia: quem piscar primeiro perde.


Subimos o elevador juntos, eu, o enfermeiro, ele e a esposa, o deixamos no laboratório e cerca de duas horas depois quando o buscamos de volta bastou me ver para grudar os olhos em mim novamente.


Resolvi então agir diferente.


Sorri para ele, ele sorriu de volta.

Perguntei se ele por acaso sabia quem eu era.

Ele disse que não.


Perguntei se ele me achava feio.

Ele sorriu, tossiu, e disse que sim.

A esposa riu.


Olhei para ela e percebi nas mãos dela um terço e a carteirinha do plano de saúde.


Virei para ele e disse:


- Não reclama, eu sou o seu anjo da guarda. O mais barato que o seu plano de saúde pode pagar.


Ele riu, tossiu e engasgou no exato mesmo segundo, provavelmente o maior elogio possível para uma piada de mau gosto, e todos nós rimos para acompanhar.


No mesmo dia o João me perguntou como estavam as suas chances e respondi:


- Eu não sei de nada, eu só avalio as macas.


Ele riu e completei informando que ele seria transferido para um hospital menor, com o mesmo salário e atendimento psicológico individual. Você pode não entender mas para ele foi como ganhar na loteria e com uma surpresa extra: trabalhar com crianças ou seja, igual ganhar na loteria acumulada de fim de ano.


João venceu também, trabalhar com anjos ajuda a aplacar a solidão e traz um propósito diário capaz de controlar qualquer depressão e os vícios trazidos por ela.


Não interessa quão doente ou sofrendo esteja uma criança em um hospital e quão difícil seja trabalhar com ela, em algum momento esta criança vai sorrir para você, e você nunca mais esquecerá.


Dois ou três dias depois me procurou para agradecer e também contar que o marido das pontes de safena havia falecido, mas perguntou de mim para a esposa na tarde anterior:


- Aquele feioso engraçadinho não vem mais?


E logo depois de falecer a esposa pediu para me agradecer por ter feito ele gargalhar nos seus últimos dias de vida.


Bondosa ela, e exagerada, ele mal tossiu e engasgou como se estivesse segurando o riso dentro de uma igreja mas se esta era a sua gargalhada fico feliz em ter levado um pouco dela comigo e espero, claro, não ter sido o acelerador no processo da passagem dele desta para uma melhor.


E assim, como na morte e na mitologia grega, a vida e principalmente a despedida também é abarrotada de "se".


Não sei se no laudo a causa da morte estava como "hilaridade fatal" e se ele morreu de rir e se a culpa foi minha e se foi não sei dizer se existe lei e penalidade para isso e nem qual condenação seria, mas aceitaria como condecoração.


Afinal de contas nunca ouvi médico recomendar tristeza como tratamento.


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Talvez tenha sido com este tipo de situação em mente quando no meu primeiro dia no hospital a Lilian**** me pegou literalmente pelas mãos e disse:


- Ah você é o menino novo né, vamos passear então.


E entre portas e corredores e corredores e portas em um momento ela também mandou a inesquecível frase, com tom de intimação:


- Você tem duas semanas para se apaixonar ou então desistir.


Como paixão só existe à primeira vista não precisei nem de dois dias para querer ficar para sempre.


Algo muito estranho acontece no seu coração quando você entra num hospital, um ambiente de guerra onde a paz sempre vence ou um ambiente de paz onde a guerra nunca termina, crianças nascem, velhos explodem, frases de autoajuda fajutas e metáforas ruins se espalham, impossível não se apaixonar.


Não lembro dela ter falado exatamente duas semanas, talvez tenha sido quinze dias e precisei de apenas quinze minutos.


Também é dela a seguinte frase: Se você chegar sorrindo vão te chamar de insensível, se você for embora chorando vão te chamar de fraco, encontre um equilíbrio.


Encontrei, muito embora nunca me impedi de gargalhar fora de hora e lugar ou de sair chorando pelos fundos muitas vezes sem saber o motivo.


A parte interessante deste processo foi descobrir que, gargalhando ou chorando, a reação de quem estivesse perto era geralmente a mesma: gargalhar ou chorar junto ou então um sorriso e um tapa nas costas, e um recado no olhar: não é hora nem lugar para isso.


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Eu tenho um carinho especial por gente com mania de se manifestar como e onde querem sem se perguntar se é o momento oportuno ou o lugar certo e Erick Klein definitivamente era uma destas pessoas, embora durante anos e até muito pouco tempo atrás eu odiava ele justamente por isso.


Um amigo meu tem uma teoria de que certos malucos só aparecem enquanto você é estudante e depois de você se formar eles simplesmente desaparecem. Eu chamaria de assombração estudantil: o loucão do bar, o tio da mochila rosa, o maluco do kung fu, aquele doido quebrador de lâmpadas com as mãos enquanto recita trechos da bíblia.


Mas o Erick não.


Erick aparecia instintiva e indistintamente para todas as pessoas da cidade fosse criança, cobrador de ônibus, estudantes fugindo da aula e advogados apressados em direção ao fórum.


Cada família tem o seu Crisipo inconveniente e toda cidade tem o seu Erick, não era filósofo (pelo menos não grego), nem enfermeiro, nem vigia e nunca entregou uma única pizza até onde eu sei, Erick era apenas um chato.


Mais precisamente, um chato com violino.


A lembrança da quantidade de caras feias quando ele surgia me faz pensar se tocar violino avulso pelas ruas é tão ou mais perigoso quanto pular dentro de roda de facas. E mais assustador que alguém armado, o violino do Erick nunca viu um estojo na vida e estava sempre engatilhado.


Talvez esta seja a pior parte, violino é um instrumento difícil de aprender e tocar o que torna difícil ignorar um violinista pulando na sua frente e mais difícil ainda repreender.


E se um velho para lá de inchado no buchinho cheio de ar fermentado nos ensinou que a vida é um sopro só podemos agradecer pelo Erick Klein ter escolhido um violino para nos zumbizar os ouvidos e não uma gaita ou flauta, ou saxofone.


Fosse um gaitista fazendo afuéhéhóhué (faça com a boca, ninguém está olhando para você) seria muito mais fácil mandar para o inferno.


E assim era, chato, difícil e inconveniente como só um violino fugitivo de uma orquestra consegue ser mas com uma espécie de alvará universal para ser chato, afinal quem questionaria uma chatice vinda de um violino?



Um maluco na rua com um violino vive dentro do desconhecido (pois inventado por mim) Paradoxo do Mullet: Na física quântica das relações pessoais uma pessoa com mullets é a pessoa menos respeitável do universo mas a coragem necessária para se usar um mullet a torna automaticamente a mais respeitável deste mesmo universo no mesmo espaço-tempo.


Você já viu alguém xingar uma pessoa apenas por causa do cabelo mullet dela? É simplesmente impossível, no exato mesmo segundo a vontade de xingar reverte em uma espécie de fissão de admiração dentro da repulsa e te impede.


Assim é um maluco de violino, tão irritantemente respeitável quanto maluco de mullets, tão desconcertante quanto o sorriso de um banguela.


Como um banguela pode sorrir? A resposta está no segredo exatamente dentro desta pergunta. E também explico no também desconhecido (pois também inventado por mim) Paradoxo do Sorriso do Banguela: A medida do sorriso de um banguela cresce exponencialmente de acordo com o desconforto nos olhos de quem tem todos os dentes.


Se para usar mullets precisa coragem, para um banguela sorrir é necessário um desprendimento de vaidade tão gigantesco tornando o sorriso a mais pura prova de espontaneidade possível, capaz de sugar todo o espectro da luz branca ao redor obrigando as pessoas com todos os dentes a ficar com um sorriso amarelo pelo resto do dia.


Quando se é banguela o único sorriso possível é o sincero, a famosa alma nua, pessoas com muito menos mostrando muito mais que você jamais poderia.


Agora imagine um maluco banguela de mullets tocando violino pelas ruas, seria um hecatombe de respeitabilidade.


Erick se esforçou para chegar neste nível. usava cabelos no comprimento do desleixo mas por ser formado em odontologia ficou nos devendo dentes ausentes, embora tivesse cabelos e dentes sinceramente desalinhados, e antes de vir para Florianópolis adotou o nome Egon após fazer um curso de numerologia.


Às vezes dava uma sorte danada de passar por uma turma em algum bar onde alguém estivesse de aniversário, tocava parabéns pra você orgulhoso como se a música fosse composição sua e ficava na roda até a festa acabar como se o aniversariante fosse ele. E sim, não raro aparecia algum filho da puta com pandeiro e de repente o portal do inferno de dissonância, rimas e ritmos desconexos se abria para só se fechar quando o último garçom estivesse indo embora.


Erick Klein tinha o cheiro azedo típico das pessoas alegremente desconfortáveis e insistentes em tentar nos abraçar mesmo com a nossa cara azeda deixando claro que não, por favor não: Bêbados, mendigos, violinistas desempregados.


Mas o seu espírito era doce, completamente diferente das inúmeras pessoas azedas acostumadas a passar e rodear por nossas vidas.


Erick nunca precisou usar o violino como porrete para se defender num mundo acostumado a viver em guerra e a sua alegria nunca nos deixava em paz. Jamais se importou por eu odiar ele e na verdade nunca soube, meu sorriso amarelo na sua presença ou minha vergonha tentando me esquivar dele parecia alimentar a sua insistência.


E eis aqui o motivo de eu odiar uma pessoa tão azedamente doce: o desprendimento da vida que nós demorarmos uma vida inteira para ter.


Nascemos e crescemos para escovar os dentes quinze vezes por dia, passar shampoo desodorante sabonete fio dental condicionador perfume e hidratante, comprar o tênis da moda e jogar roupa fora de seis em seis meses e aí dar de cara com uma pessoa feliz sem ter nem precisar de absolutamente nada, enquanto você não consegue viver sem, definitivamente ofende o nosso conforto escondido atrás do consumo, da nossa imagem social pela posse e não por ser quem de fato somos.


É um argumento pobre de uma filosofia barata mas lembre-se, vivemos em um mundo onde filósofos morrem de rir, pessoas com mullets não ligam para a sua opinião e banguelas sorriem sem se importar se isto vai te traumatizar pelo resto do dia.


E assim, como na morte e na mitologia grega, na vida e na despedida dela, o folclore urbano também é forrado de "se".


Eu me pergunto se um dia pelo centro da cidade o Erick fez a trilha para o Romão pular dentro da roda de facas ou se o Romão falou e enrolou tanto a ponto de até o Erick desistir ou se a trilha do Erick fez o próprio Romão querer ir embora.



E da tríade dos sentimentos mais propagados e menos compreendidos nos dias de hoje, empatia, gratidão e liberdade, Erick é uma lição de gratidão, aquela ensinada na exata medida em que se aprende: não é agradecer quando se conquista muito mas sim valorizar o que se tem quando se tem pouco.


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E por falar em gratidão o cantor e guitarrista Jerry Garcia foi o hippie mais legal de todos e um dos maiores compositores da história da música, representante máximo da cultura Flower Power e um dos fundadores do Grateful Dead, a maior (e talvez a única) banda de Tudo-Rock do mundo (Experimental Rock, Folk Rock, Country Rock, Jazz Rock, Psychedelic Rock, Blues Rock, Etc Rock).


Jerry escolheu o nome da banda em um dicionário de expressões folclóricas cujo significado representa a alma de alguém morto agradecido pelas homenagens e o carinho recebido pelos ainda vivos durante sua passagem da vida para a morte, e no Brasil se chamaria provavelmente Um Morto Muito Grato ou Falecido & Agradecido ou ainda O Gratidão Morto (eu estou rindo).


Grateful Dead foi provavelmente a primeira banda de rock a ser cultuada organizadamente como uma religião e a ter não só os seus fiéis e amáveis seguidores (os Deadheads) como também os insistentes odiadores (I'll be Grateful when they're Dead), os haters raiz.


Jerry Garcia não se importava muito com ambos, era avesso à idolatria e com certeza jamais pregou qualquer forma de ódio, você nunca vai achar nenhuma foto dele fazendo nem sinal de Peace & Love para uns e nem de Fuck You para outros, pelo menos não com a mão direita, na qual teve o dedo médio decepado ainda criança, ajudando seu irmão a cortar lenha, o que felizmente não o impediu de ser um letrista, compositor e guitarrista influente e também não fechou do rosto um sorrisinho de genro que a sua mãe jamais pediria a Deus.



Apesar da cara de gente fina indisfarçável, como todo hippie envelhecido dentro da indústria da música (e também um sobrevivente e testemunha do fim da Guerra do Vietnam) Jerry aprendeu a disfarçar em suas composições letras e recados doce-amargos bem claros contra os inimigos da contracultura e inocência hippie, como neste lema no fim da letra da minha música favorita, Ship of Fools:


- Don't lend your hand to raise no flag atop no ship of fools.



Ship of Fools (ou Navio de Tolos) é uma alegoria surgida ainda na Grécia Antiga e tem origem no Livro VI da República de Platão sobre um navio com uma tripulação disfuncional e incapaz representando os problemas de um sistema político baseado na escolha popular ao invés do conhecimento especializado, a nossa tão romantizada Democracia.


Esta alegoria ressurgiu na Idade Média através dos escritos do escritor Sebastian Brant no livro "A Nau dos Insensatos" (Stultifera Navis ou Narrenschiff) em 1494, um longo poema satírico criticando os hábitos e costumes do período como jogar fezes e urina pelas janelas para repelir mendigos e seresteiros e a comunicação através de ofensas e maldições em diálogos rotineiros, e também na pintura "Navio dos Loucos" do artista holandês Hieronymus Bosch em 1495, retratando a devassidão e a profanação social até mesmo (ou principalmente) dentro do clero religioso da época e vícios como o jogo e o álcool, um estilo de vida onde o hedonismo surge como consequência do niilismo exasperado pós-idade média e pré-revolução industrial e que séculos depois não deixaria de ser a base da contracultura do movimento hippie.


Jerry Garcia não morreu jovem como prega a lenda dos grandes nomes do Rock and Roll mas com certeza cedo demais por conta do seu estilo de vida, morreu do que não quis porque viveu como quis, em vez de live fast/die young, live fat/die hunger: Obeso, diabético, viciado em cocaína e heroína, teve seu único vício sóbrio e saudável quando descobriu o mergulho marítimo na última década de vida, praticando até pouco tempo antes de morrer de ataque cardíaco em uma clínica de reabilitação.


Quando morreu no dia 09/08/1995 arrastou dezenas de milhares de pessoas para o seu funeral carregando outras dezenas de milhares de flores e se a vida imita a arte como diz o ditado e Jerry morreu grato como o próprio nome da sua banda previu, a morte imitou a lenda com muita choradeira, cantoria, gritaria e até briga de esposa com ex-esposa (olha o sorrisinho de genro indesejado aqui), mas felizmente nada de pancadaria e até hoje a data da sua morte é considerada um feriado nacional informal nos Estados Unidos.


Sabe como é, hippies possuem o seu próprio calendário, e se um deles disser que um dia da semana é domingo, domingo vai ser.


Para azar deles a data do vigésimo quinto ano da morte do Jerry Garcia em 2020 foi em um domingo mesmo mas não tem problema, em 2021 a data caiu em plena segunda feira para fazer jus ao movimento.


Como pontuou genialmente o jornalista Mike Powell:


Make America Grateful Again.


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Jerry Garcia é também prova de que deixar um legado é ser lembrado pelo que fez e ser ignorado pelo mesmo feito.


Eu explico.


Para você ter uma ideia da importância do Grateful Dead na história da música eles criaram junto com o engenheiro de som Owsley Stanley a maravilhosa Wall of Sound, um trambolho sonoro estranho e e aparentemente disforme, mais parecido com uma reunião de 77 aparelhos de som domésticos empilhados por 77 maridos diferentes da década de 70 que se juntaram pra fazer um som na praça ou uma coleção de Lego de peças gigantes de algum artista plástico excêntrico viciado em LSD.


Não deixa de ter um fundo de verdade, Owsley Stanley é até hoje conhecido por ter sido um dos primeiros fabricantes particulares da droga e ter fabricado e distribuído mais de cinco milhões de doses e por, junto com escritor Ken Kesey, ajudar a criar nos Estados Unidos o que chamamos hoje de Música Psicodélica e o início do movimento hippie na segunda metade dos anos 60 através das Acid Tests Parties, expressão que, assim como explicar hilaridade fatal, se traduzir estraga.


Ken Kesey também é conhecido pelo maravilhoso livro "One Flew Over the Cuckoo’s Nest", conhecido no Brasil como "Um Estranho no Ninho" (também filme e também maravilhoso e de mesmo nome com o Jack Nicholson doidão).


Mas aí em 1970 repentinamente o LSD se tornou proibido, todos foram presos e logo após liberados menos Stanley, condenado à dois anos de prisão. Após sair da cadeia começou a projetar um sistema de som específico para o Grateful Dead batalhando contra ecos, distorções, playbacks e delays e tentando ao máximo reproduzir ao vivo a experiência de camadas e detalhes das composições da banda em seus álbuns.


Quem já tocou em um banda sabe bem, o ensaio foi perfeito mas aí na hora do show o som da bateria fica alto demais, o baixo só faz tugudugudu (faça com a boca, ninguém está olhando para você), a guitarra fica muito aguda e já na primeira música a impressão é de ter outra banda de frente para a sua, tocando a mesma música satanicamente ao contrário.


E mais alto que a sua banda.


E quando o vocal enfim começa ela entra junto, a microfonia, basicamente uma máquina de fazer caretas.


E se for ao ar livre quem está na frente do palco fica surdo e quem está longe não entende nada, isso se ouve alguma coisa, e dependendo do vento os vizinhos reclamam e a plateia não dança.


Multiplica esse sufoco por cem e soma com drogas e muita lama e bem-vindo ao início dos anos 70.


Mas aí veio a Wall of Sound.


Pela primeira vez na história da música a banda ouvia exatamente o que o público estava ouvindo e vice-versa, e pela primeira vez também todos os amplificadores ficavam atrás dos músicos.


Na sua configuração mais completa a Wall of Sound chegou a pesar mais de 70 toneladas com 600 alto-falantes de 5, 12 e 15 polegadas e mais de 50 tweeters distribuídos em cerca de 10 metros de altura por 30 metros de largura, e revolucionou a percepção das pessoas com a música ao vivo e os festivais.


Seis PAs independentes e onze canais de transmissão separados: Um para os vocais, um para cada uma das duas guitarras, um para o piano, um canal para cada corda do baixo e três canais para a bateria.


Sim, o sonho molhado dos sonhos molhados dos baixistas deste mundo: UM CANAL PARA CADA CORDA DO INSTRUMENTO.


Existiu apenas uma Wall of Sound mas haviam três estruturas e armações iguais e, enquanto uma equipe montava o som em uma estrutura e a banda tocava, outra equipe estava na cidade anterior desmontando a primeira estrutura e outra já estava na cidade seguinte da turnê montando a terceira e assim sucessivamente.


Sennheiser, McIntosh, JBL, Alembic, ElectroVoice, a Wall of Sound era um Frankstein de marcas costuradas pela concepção de infinitas tentativas e erros de reproduzir ao vivo a qualidade de um estúdio.


Mas como você pode imaginar este equipamento todo tinha preço e custo refletidos diretamente no cachê, na mobilidade e na disponibilidade, levando em conta ainda o hábito do Grateful Dead fazer em média 100 shows por ano e sendo assim, em 1974, dois anos depois do início desta aventura sônica a banda estava quase falida e boa parte de todo este conjunto começou a ser vendido e leiloado e até hoje é disputado entre fãs e colecionadores.



E assim, como na morte e na mitologia grega, na vida e na despedida dela e no folclore urbano a Wall of Sound também é uma lista de sobreposições de "se":


Se atualmente bandas como U2 e Metallica só viajam com arranjos e sistemas de som próprios e festivais como Glastonbury e Lollapalooza impressionam pelas suas estruturas e bandas de Heavy Metal fazem pose com paredão de amplificadores Marshall atrás (e se hoje na frente do palco você não fica surdo e nos fundos você não se sente surdo), tudo começou na Wall of Sound, inspiração direta de artistas que todos nós amamos nos dias atuais no Rock and Roll, no Pop, no Hip Hop e na música eletrônica, seja de forma estética ou técnica, ou principalmente na busca pela qualidade e identidade única pela qual todo artista sonha em ser reconhecido.


Se o seu artista favorito é um chato específico com tamanho de palco e equipamento mínimo exigido por contrato, a culpa é da Wall of Sound.


Marcas como a maravilhosa Void estudaram muito a fundo as ideias de distribuição sonora concebidas por Stanley e o sensacional James Murphy do LCD Soundsystem provavelmente nunca teria criado a Despacio Soundsystem sem elas, diretamente influenciada e com a intenção de interagir com o público da mesma forma pensada nos anos 70.


Explicando a frase do começo, você pode não saber quem foi Jerry Garcia e o Grateful Dead, nem Ken Kesey ou Owsley Stanley e nunca ter ouvido falar da Wall of Sound.


Mas se você já dançou, cantou e pulou vendo o show da sua vida na frente de paredes de som monstruosas penduradas você estava louvando um legado construído literalmente no ombro de um gigante.


Um gigante enorme e desengonçado.


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E por falar em cheiro azedo, o ser humano nasce apenas uma vez mas quando se permite renasce várias vezes ao longo da vida, e cada renascimento parece ser mais demorado e dolorido que o anterior.


Em um destes renascimentos alguns anos atrás a minha saúde estava definhando pelos mesmos motivos de sempre os quais uma saúde definha: má qualidade do sono, da alimentação e das relações.


As soluções são simples mas demandam disciplina, para dormir bem primeiro precisa aprender a dormir cedo, para se alimentar bem primeiro precisa aprender o que é se alimentar, e para se relacionar bem primeiro precisa aprender a se relacionar consigo mesmo.


São batalhas diárias.


Em uma destas batalhas descobri o bem de tomar água com limão de manhã ao acordar e sinceramente, minha vida mudou e desde então se a morte me tem cheiro de maçã, a vida para mim tem cheiro de limão.


Parece papo de hippie mas perceba, hippies conseguem levar uma vida onde todos os dias são domingo e esta lição eu aprendi também: ame as segundas-feiras e todo o resto será consequência.


A vida pode ser muito azeda como acabamos de ler, e um tanto quanto amarga dependendo das nossas escolhas como nos ensinou a Júlia, o João e o Arnaldo, mas nem todo azedo é ruim e de amargo muita coisa amarga não tem nada.


Vai por mim, o azedo vai salvar a sua vida e o amargo vai tornar ela melhor, o limão faz bem para o estômago e a rúcula faz bem para os dentes e ambos te trarão a coragem de quem usa mullets e a alegria dos banguelas.


Existe um ditado muito antigo, de origem desconhecida: Se uma criança fizer cara feia é porque faz bem para a saúde, então quando a vida te der limões esprema pelo menos um de manhã cedo e quando o estoicismo precisar de uma trilha sonora pense num violino rouco nas mãos de um mendigo.



Erick sempre foi (e agora sempre será) um dos três espíritos do Conto de Natal escrito por Charles Dickens assombrando o personagem principal Ebenezer Scrooge em apenas uma noite.


É difícil escolher qual dos três ele interpretaria então talvez seja todos de uma vez só, o passado para te lembrar da sua inocência, o presente para te mostrar a sua falta de empatia e gratidão com o mundo ao seu redor e o futuro, te obrigando a olhar de novo para o seu passado e ao redor do seu presente se você quiser reescrevê-lo.


Não sei dizer qual seria a melhor forma de morrer e jamais saberia dizer também qual a melhor forma de viver mas o Erick com toda certeza escolheu virtuosamente para ele.


E como todo chato recebeu o maior troféu possível, o de deixar saudades quando se vai, um tipo de saudades estranha de quem passou por nossa vida sem nunca ter feito parte dela, como um cão fedido sem nome quando chega, cheira você e abana o rabo, ganha carinho e some para depois então sempre reaparecer na nossa memória nos momentos mais aleatórios possíveis e nos fazer perguntar: que fim levou aquele desgraçado?


"“Viver na virtude é viver de acordo com a experiência do curso real da natureza."


- Crisipo de Solos


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Talvez o Erick fosse outra metáfora, mais uma destas manifestações de vida as quais ignoramos todos os dias como sorrir sem motivo e chorar sem razão: Erick Klein foi corajoso como um cara de mullets, desprendido como um banguela sorridente, desaforado como um hippie vivendo um eterno domingo e alegre como um cão sarnento.


Morreu de parada cardiorrespiratória ao lado de sua mãe e seu irmão em Santa Maria, sua cidade natal no Rio Grande do Sul, de quem e qual ficou afastado por décadas, no dia 21/03/2020.



Descanse em paz, aquela que você ficou nos devendo, seu chato.


Não morreu rindo como Crisipo mas não morreu sozinho e no fim da sua vida ou pouco antes dela, retornou para a sua mãe.


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Em tempo, embora Monty Python seja de matar de rir a tal piada mortal (infelizmente) não existe e a versão traduzida para o alemão não significa absolutamente nada, e se você chegou até aqui obviamente ainda está vivo mas não aprendeu a lição maior do Estoicismo, na minha opinião:


Crisipo não se importou em arriscar a sua própria vida rindo como se não houvesse amanhã (e de fato não houve) então talvez a lição seja não buscar sentido nas coisas, menos ainda em piadas e principalmente, o "se" definitivo: Não se importe.


E se alguém não gostar, responda como um cão de rua, ignore e saia de rabo abanando em outra direção.


Entre o doce e o azedo, encontre um equilíbrio.


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*, **, ***, **** Histórias pessoais de terceiros ainda vivos devem ter seus nomes verdadeiros preservados, alguns nem tanto, sejam eles Joões, Júlias, Arnaldos, Lilians, Ericks e Jerrys, nas próximas linhas sempre que você ler um novo nome considere também estes asteriscos novamente.


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Cápsula do tempo.


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Por falar em mullets a Austrália é conhecida por duas piadas as quais os australianos não contam sobre si mesmos: a natureza formada por insetos parecidos com personagens rejeitados de filmes de aliens dos anos 80 e por entregar ao mundo no máximo apenas uma grande banda de Rock and Roll a cada dez anos.


Foi assim com AC/DC, Midnight Oil, Silverchair e Tame Impala.


O lugar desta década ainda está vago então em 2022 eu voto em Amyl and The Sniffers por vários motivos: Punk Rock dos bons cantado por uma mulher incansável e o mais importante: Todos os quatro membros da banda usam mullets e o mais audacioso ainda usa franja.


Não é para os fracos.


Todos parecem alienígenas picados por algum inseto alienígena australiano, incluindo os timbres dos instrumentos e claro, músicas curtas como rege a cartilha Punk Rock e os videoclipes imbecis e sensacionais como somente bons punks sabem fazer.


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E por falar em gratidão, StoryCorps é uma luz nesse mundo.


É um projeto relativamente simples: viajar os Estados Unidos em um trailer/estúdio de gravação e em cada cidade gravar depoimentos e entrevistas com os moradores voluntariamente, em parceria com as rádios locais.


Sempre apenas uma ou duas pessoas em monólogos ou diálogos simples: lembranças, momentos alegres ou tristes, casais contando como se conheceram, irmãos falando sobre a mãe, o pai ou o avô, amigos lembrando algo da infância, veteranos de guerra narrando algum momento, sonhos realizados ou interrompidos, amores conquistados ou perdidos.


Áudios, animações ou vídeos curtos de 2 a 5 minutos, mostrando e registrando a vida de pessoas reais e suas experiências. Algumas histórias de aquecer a alma e outras de gelar o coração, mas tudo parte dessa experiência que é a vida na terra.


No site eles identificam a missão do projeto como: Preservar e compartilhar as histórias da humanidade para construir conexões entre as pessoas e criar um mundo mais justo e compassivo.


Anotei aqui os meus dez favoritos e espero que mais pessoas ouçam, assistam e gostem, você acha facilmente no site ou no canal do Youtube deles:


Mary Johnson and Oshea Israel


Mary virou amiga do cara que matou o seu único filho. Pois é.


Judy Charest and Harold Hogue


Harold salvou Judy quando ela ainda era um bebê, somente com 21 anos de idade ela soube a história e o motivo, e quase 60 anos depois eles se encontraram pra falar sobre aquele dia.


The Nature of War


Um soldado do exército dos EUA e duas crianças iraquianas, ou seja, três crianças.


Traffic Stop


Alex Landau não sabia o que significava ser negro nos EUA até ter de lidar com a polícia, seis anos depois ele e sua mãe adotiva conversaram sobre aquela noite.


The Saint of Dry Creek


Patrick Haggerty em um único dia de sua vida foi aceito como era pelo seu pai antes mesmo de se aceitar como tal, descobriu então que aceitação era sobre aprender a aceitar também e de quebra ouviu o maior conselho de todos.


Facundo the Great


É, o nome dele era Facundo e dessa vez ninguém iria mudar isso, sensacional demais.


1st Squad, 3rd Platoon


Travis Williams foi o único a não ir no mesmo carro blindado onde todo os seus amigos do exército morreram em uma explosão, e teve de recolher seus corpos e depois seus pertences pra mandar para os familiares.


The Human Voice


Uma das inspirações do criador do site, Studs Terkel e um bebê no metrô, lindo demais.


A Certain Kind of Love


Glenda Elliott, sem palavras, a voz dela já é de cortar o coração. Que desencontro, ou como ela mesma diz "existem certas formas de amor que nunca morrem".


Germans in the Woods


Joseph Robertson viu um nazista no meio do mato e atirou. E foi o dia mais triste da vida dele, difícil tirar uma história dessas da cabeça.


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