ENSAIO 82: GUY MONTAG
- LFMontag
- 2 de jul.
- 8 min de leitura
Atualizado: há 18 horas

Foto: Robson Ramon
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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16/04/2025
GUY MONTAG
Você não pode nunca destruir completamente a verdade.
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Não existe nenhuma prova ou indício de que os discordianos Gregory Hill e Kerry Thornley tiveram alguma inspiração no judaísmo, mas existe pelo menos uma prática judaica que pode não só remeter ao tema como também provar a necessidade social da discordância e mais, prova como a paz e a estabilidade só existem na preservação do contraditório.
No judaísmo, um minyan (em hebraico, iluminado, mas também número, contagem) é o quórum de dez adultos judeus necessários para certas obrigações religiosas, baseadas no princípio da dúvida: Se houver dez pessoas em uma sala e nove concordarem, o papel da décima é discordar e apontar falhas em qualquer decisão tomada pelo grupo.
Sem o décimo homem as orações públicas ficam incompletas, e reforça a ideia de que cada indivíduo é essencial.
O seu trabalho é desafiar a sabedoria convencional e recebida; o olhar de forma criativa, independente e de uma nova perspectiva, envolver-se ativamente e reconsiderar o status quo; analisar e buscar informações e argumentos e contradizer as teses construídas pelos diversos departamentos de produção da comunidade.
Basta uma anomalia para refutar uma tese, ou pelo menos para justificar um novo exame.
O décimo homem também analisa assuntos que passaram desapercebidos, dando liberdade para analistas de nível inferior que desejam levantar questões e serão então consideradas em níveis superiores na cadeia de comando.
A discordância da função é impessoal, pois quanto mais amabilidade e proximidade entre os membros de formulação de políticas, maior é o perigo do pensamento crítico independente frente ao pensamento de grupo, e provavelmente resultará em decisões irracionais, desarmonias e animosidades internas e ações desumanizantes dirigidas contra grupos externos ou ainda.
Na sociedade civil e ocidental os décimos homens estão cada vez mais raros e tratados, não tão metaforicamente, igual pregos em ambientes onde todos possuem apenas um martelo como ferramenta; a aceitação no grupo depende da conformidade e grupos são compostos por pessoas politicamente orientadas, reativos na presença de ocorrências e não de processos.
Os décimos homens são essenciais pois é nosso dever como humanos e cidadãos procurar as falhas em cada argumento, é um elogio se somos enfrentados por uma discussão fundamentada, factual e pensada abordando os nós soltos, as pontas não amarradas, as cordas desalinhadas.
Nem sempre reconhecemos a solução certa e, ao ouvir os outros, podemos melhorar a partir dos pontos de vista contrários, uma oposição leal em busca da razoabilidade e responsabilidade e mira o bem comum: compartilha os fins, mas discorda propositadamente dos meios.
O décimo homem diz o que precisa ser dito, e para isso quebra a espiral do silêncio da conformidade.

Este conceito adentrou o cristianismo, historicamente na igreja católica e com finalidade de escolher e decidir sobre a santidade de candidatos a santos.
A expressão "advogado do Diabo" vem do latim advocatus diaboli e surgiu oficialmente no século XVI durante o papado de Sisto V (1585–1590), quando o cargo foi formalizado no processo de canonização, um funcionário da Igreja cujo papel era argumentar contra, buscar falhas morais, exageros em relatos de milagres, contradições e qualquer argumento racional que impedisse o reconhecimento oficial da santidade.
Sua função era garantir o rigor do processo e evitar a canonização por erro, emoção ou pressão política e em muitas discussões havia também o "advogado de deus" (advocatus Dei), e fazia o papel oposto: defendia o candidato à santidade.
E por falar em desconformidade, a expressão "ovelha negra" surgiu da observação literal de rebanhos; no geral ovelhas têm lã branca por predominância genética, mas ocasionalmente nascem ovelhas com lã escura, causada um gene recessivo.
No passado, essas ovelhas eram consideradas de menor valor comercial porque sua lã não podia ser facilmente tingida e era menos útil para a indústria têxtil, logo a presença de uma ovelha negra em um rebanho era vista como algo indesejado ou problemático.
Com o tempo, essa imagem foi transformada em metáfora e passou a designar uma pessoa dentro de um grupo, especialmente em famílias, que se destaca negativamente ou é vista como uma decepção, que não segue as regras, rompe com tradições ou causa vergonha ao grupo.
É uma forma simbólica de marcar a exclusão ou a marginalização de quem não se encaixa nos padrões estabelecidos.

Apesar da conotação negativa tradicional, o termo começou a ser ressignificado recentemente em contextos culturais, políticos e pessoais, e pode representar alguém com coragem de ser diferente e questiona a norma e se recusa a seguir padrões que considera injustos ou falsos.
A ovelha negra passa a ser o símbolo do não conformismo e da autenticidade, em contraste com um meio acostumado a obediência e silêncio e, eventualmente, torna-se líder ou ao menos um guia intelectual.
Essa nova leitura aparece em músicas, filmes, literatura e discursos pessoai, uma figura que inspira resistência, independência e lucidez e marginal a necessária; representar o início da mudança, a voz dissonante.
O que antes era símbolo de defeito, passa a ser símbolo de força.
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Se manuscritos não queimam para Bulgakov, para Guy Montag queimar livros era emprego.
No livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury e publicado em 1953, a história se passa em um futuro indefinido, uma sociedade onde os livros são proibidos e o pensamento crítico é suprimido; o governo controla a população por meio da mídia e do entretenimento superficial e a cultura se tornou inteiramente imediatista, fragmentada e apática.
Nesse mundo, os bombeiros não apagam incêndios, eles tocam fogo em tudo armados com lança-chamas em cidades onde tudo é construído com material incombustível e sua missão é queimar livros, considerados perigosos para a estabilidade social.
O título refere-se à temperatura em que o papel pega fogo e se incendeia e a obra é uma crítica poderosa ao controle estatal, à censura, à superficialidade da cultura de massa e a perda da capacidade de pensar criticamente.
A narrativa mostra como a sociedade chegou a esse ponto não apenas por imposição política, mas por escolha coletiva de rejeitar a complexidade da vida, preferindo distração constante.
Logo no início do romance o protagonista e bombeiro Guy Montag se diz orgulhoso em sua profissão, a de destruir pelo fogo.
Montag vive com sua esposa Mildred, uma mulher completamente alienada e absorvida pelas "paredes-família", enormes telas que transmitem programas vazios, e vive constantemente dopada com comprimidos para dormir e, quando acordada, não possui lembranças nem pensamentos profundos.
Tudo começa a mudar no enredo quando Montag conhece Clarisse McClellan, uma jovem de 17 anos curiosa e observadora.
Ela caminha pelas ruas aparentemente sem propósito, gosta da natureza e, principalmente, faz perguntas.
Uma delas desarma Montag:
- Você é feliz?
Essa pergunta causa uma crise interna e ele começa a refletir sobre sua vida, sua profissão, o estado do mundo ao seu redor e uma repentina e profunda sensação de vazio que o consome.
Clarisse também comenta:
- As pessoas não falam sobre nada.
Elas nomeiam muitas coisas, falam de roupas, de automóveis, de nadar, mas falam muito pouco sobre elas.
Em outro momento Montag encontra o ex-professor de literatura Faber, que resignado com a sua vida após a proibição da sua profissão, comenta:
- Então, vê agora por que os livros são odiados e temidos? Mostram os poros no rosto da vida. As pessoas confortáveis só querem rostos de cera, sem poros, sem pelos, sem expressão.
E, em seu melhor momento, Guy Montag pergunta e responde para si mesmo e ao mesmo tempo:
- É verdade que antigamente as pessoas não tinham medo de livros, e os livros cheiravam a nozes e musgo e que podiam se sentir os poros da vida neles?
Pouco depois, Clarisse desaparece misteriosamente e Montag fica cada vez mais perturbado com seu trabalho e um momento decisivo acontece quando participa da queima de livros na casa de uma senhora idosa, ela se recusa a sair e acaba morrendo queimada junto com sua biblioteca.
Não antes sem gritar:
- Prefiro queimar com meus livros do que viver sem eles.
E logo antes de morrer, cita uma frase de Hugh Latimer, mártir protestante inglês:
- Você não pode nunca destruir completamente a verdade.
Esse episódio abala profundamente o protagonista, que começa a esconder livros em casa tentando entender o que há de tão perigoso neles e sua esposa, ao descobrir, entra em pânico e o denuncia.
Ao mesmo tempo seu chefe, o Capitão Beatty, já suspeitava da sua mudança e o confronta com seu vasto conhecimento literário (um personagem contraditório – culto, mas defensor da censura).
Durante um embate tenso, Beatty explica como funciona o sistema e diz:
- Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com fatos sem profundidade e elas se sentirão confusas mas absolutamente brilhantes quanto a quantidade de informações. Assim, elas imaginarão estarem pensando e terão uma sensação de movimento sem sair do lugar.
E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam.
Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências.
Aí reside a melancolia.
E emenda:
- Se você não quiser um homem infeliz politicamente, não lhe dê dois lados para escolher. Dê-lhe apenas um. Ou melhor ainda, nenhum.
Logo após Montag é forçado a queimar sua própria casa e (tomado pelo desespero e revolta) mata Beatty com o lança-chamas e foge, tornando-se um foragido enquanto a polícia mobiliza drones e até um cão mecânico farejador para capturá-lo e, após não conseguir e para não admitir sua falha, mata um inocente em seu lugar, transmitindo a execução ao vivo como espetáculo televisivo.
Montag foge para fora da cidade e encontra um grupo de “homens-livro”, intelectuais exilados que memorizam obras literárias para preservá-las; cada um deles é um livro esperando um tempo onde o conhecimento voltará à sociedade.
Enquanto isso, a cidade é destruída por um ataque nuclear repentino e o colapso final da civilização mostra a fragilidade de um mundo controlado pela ignorância e então o romance termina com Montag e os outros sobreviventes caminhando rumo às ruínas, com a intenção de reconstruir uma nova sociedade baseada no conhecimento, quando um dos homens-livro conclui:
- E quando nos perguntarem o que estamos fazendo, você pode dizer: estamos lembrando. Estamos lembrando para que um dia, se as pessoas nos perguntarem de novo, possamos dizer como foi.
E não cometer os mesmos erros.
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A história do livro não parece os dias de hoje e um futuro não tão longe?
Pois é.
Algo tristemente interessante sobre a arte perdida da leitura é que após a invenção do smartphone os livros passaram a ser não mais personagens em construção de narrativas, prosas e romances, mas sim objetos decorativos para construção de personagens para as redes sociais.

O que me faz admirar Guy Montag é que em algum momento ele decide discordar de si mesmo, de suas crenças, de tudo plantando anteriormente em sua consciência e, em uma metáfora talvez não pensada pelo escritor, renasce das cinzas do fogo que ele mesmo espalhou.
Guy Montag é o décimo homem em uma comunidade corrompida, um advogado do diabo em uma confraria de santos autodeclarados, uma ovelha negra em uma sociedade que faz de tudo para ser homogênea, uniforme, monocromática.

E eventualmente, um dia, encontra seus semelhantes.
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Cápsulas pelo dobro do preço do tempo.
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O Donald Trump resolveu tarifar o Brasil em 50%.
Eu te disse que o preço da paçoca iria subir.
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