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ENSAIO 03: AMA-GI

Atualizado: 12 de out. de 2023



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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08/03/2022


AMA-GI


Refrigerantes transparentes, pinho sol inflamável e suco de laranja adulterado, os sumérios e a resiliência, a House Music e dois anarquistas italianos, Rafael Braga e a liberdade, o ingrediente mais caro do universo.


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Três histórias aleatórias sobre quase o mesmo tema.


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Em dezembro de 1941 os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial contra o Eixo Alemanha/Áustria/Itália/Japão após o ataque japonês em Pearl Harbor encerrando assim, pelo menos oficialmente, todas as relações comerciais entre a América do Norte e a Alemanha sob o regime nazista, incluindo o envio e produção do xarope de cola da já então mundialmente famosa Coca-Cola, deixando as fábricas alemãs vazias e ociosas.



Tentando contornar este problema o chefe da companhia local Max Keith decidiu criar e produzir um refrigerante usando as mesmas instalações mas com os produtos disponíveis na Alemanha na época como açúcar de beterraba, soro de leite e bagaço de maçã, ingredientes chamados genericamente de "sobras das sobras".


Os empregados foram orientados a usar a imaginação ("fantasien") até atingir um produto agradável ao paladar e durante o processo um dos vendedores cunhou o nome "Fanta!", cujo resultado final produzido tinha cor e sabor de malte açucarado, vendendo milhões de unidades por ano durante os anos da guerra, sendo também fabricada em outras filiais e em outros países ocupados pela Alemanha, sempre a partir de sobras de alimentos locais e por isso mesmo sempre criando sabores diferentes e, como os cidadãos estavam envolvidos e convocados para os esforços de guerra, quase sempre produzida por trabalho escravo.



Com o fim da segunda guerra as fábricas foram reincorporadas pela Coca-Cola e a produção da Fanta encerrada. Neste mesmo período o general russo Georgy Zhukov havia sido apresentado ao refrigerante Coca-Cola original pelo também (e ainda) general norte-americano (e ainda aliado) Dwight D. Eisenhower e gostou o suficiente do refrigerante que já era considerado na época como o maior símbolo do imperialismo ocidental, vulgo capitalismo, e assim criou-se um pequeno impasse diplomático: O general russo gostaria de continuar tomando mas não ser visto, comentado ou fotografado consumindo a bebida.



Segundo consta Zhukov perguntou se era possível a Coca-Cola ser fabricada e embalada de modo a parecer com vodca para o general Mark W. Clark, que pediu para o presidente dos Estados Unidos Harry S. Truman, que entrou em contato com presidente do Conselho da Coca-Cola James Farley, que delegou a função para o supervisor técnico na Áustria Mladin Zarubica, que encontrou um químico capaz de remover o corante da Coca-Cola e assim nascia a White Coke, uma versão transparente em uma exclusivíssima garrafa reta de vidro com uma estrela vermelha na tampa.



Esta versão nunca chegou a ser comercializada e toda a produção era encaminhada diretamente para Zhukov e seus companheiros do alto escalão militar russo.


Graças a esta relação os embarques de insumos e matéria-prima da Coca-Cola transitavam livremente e sem interrupção pelas zonas ocupadas da União Soviética entre Áustria e Alemanha enquanto outros produtos costumavam levar semanas para serem liberados.


Mas em geopolítica ter um inimigo em comum não forma uma amizade, alguns anos depois URSS e EUA não eram mais aliados, e passaram a ser adversários dando início ao período da Guerra Fria e os embargos se tornaram a ordem do dia, a Coca-Cola transparente deixou de ser produzida e cada império passou a viver com os seus próprios símbolos e maus hábitos, álcool de um lado, açúcar de outro.


Alguns anos depois quando a Pepsi decidiu entrar em guerra contra a Coca-Cola na hoje conhecida como Guerra das Colas e passou a fazer vários refrigerantes coloridos e de diferentes sabores a empresa decidiu voltar a fabricar oficialmente a Fanta, cuja produção na Itália em 1955 originando o sabor e a cor mundialmente conhecida por Fanta Laranja, e em 1961 o primeiro refrigerante oficialmente transparente da marca, Sprite, no sabor limão.



Não existe em lugar nenhum na internet o nome do químico responsável por tirar a cor da Coca-Cola logo não seria nada exagero fantasiar (risos) que russos ou americanos deram um sumiço nele, provavelmente o primeiro assassinato da história da Guerra Fria e o único onde ambos os lados concordaram com a ação, e com toda certeza renderia um ótimo roteiro de filme ou série de TV.


E assim a Fanta que não era laranja se tornou laranja de fato e a Coca-Cola no melhor do capitalismo criou um produto exclusivo para um comunista e até onde se sabe o único relato conhecido de um russo fingindo tomar vodca quando na verdade era refrigerante e um dos maiores exemplos da boa diplomacia e cavalheirismo entre profissionais e claro, um exemplo perfeito de até onde se pode chegar e o quanto se pode conseguir com poder e bons contatos.


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Foi já como Fanta na cor laranja que o refrigerante chegou no Brasil, menos para os amazonenses.


Durante quase todo o período das décadas de 60 e 70 a Fanta Laranja demorava semanas viajando por terra e barco de São Paulo para Manaus e então em barcos menores até as regiões ribeirinhas e bares ao longo do Rio Amazonas, empilhada em engradados expostos ao sol e calor excessivo em todo o trajeto na companhia de lenha seca, camisetas de algodão, produtos de limpeza e alimentos industrializados. Chegava no destino final já sem cor, com parte do gás perdido e açúcar decantado no fundo da garrafa.


Com a criação e abertura da Rodovia Transamazônica e novos meios de transporte como o hidroavião a Fanta Laranja de repente passou a ser de fato laranja, gaseificada e... rejeitada.


Os moradores locais odiaram a suposta inovação e sentiam saudades do refrigerante o qual na mente deles era o original: sem cor, com pouco gás e que precisava ser chacoalhado para misturar o açúcar do fundo com o resto do líquido. Como nenhum morador da região tinha o telefone de contato de nenhum general ou presidente a Fanta jamais voltou a ser o que era, ou melhor, parecia ser.


E assim a Fanta Laranja que sempre foi laranja nunca deveria ter se tornado laranja para os olhos dos moradores da Amazônia.


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Quando eu tinha 15 ou 16 anos lá pela década de 90 estávamos na Rua 24 Horas em Curitiba quando o Alessandro Santa Cruz trouxe uma Pepsi transparente e todos nós duvidamos e falamos que ele havia colocado Sprite dentro da garrafa (mesmo com o nome "Crystal Pepsi" escrito na embalagem), por um simples motivo: a Pepsi transparente tinha gosto de limão. E o Alessandro, que nunca foi o mais diplomata da turma, não só discordava como era teimoso e com dinheiro no bolso o suficiente para comprar mais duas Pepsis, uma normal e outra transparente e apostar com a gente beber de olhos fechados e adivinhar qual estávamos tomando.


Sem poder enxergar, o gosto de limão sumiu.


Até então nunca ninguém havia tomado nenhum refrigerante transparente que não fosse sabor limão e o Santa Cruz venceu a aposta, duas fatias de pizza ainda na mesma madrugada.



Ironicamente a própria Coca-Cola lançou em 2018 no Japão a Coca-Cola Clear no sabor limão, um ano depois o sabor lima, e ambas eram relativamente fáceis de encontrar em lojas de importados no Brasil mas o Alessandro nunca mais se manifestou sobre o tema e já sabíamos ser sabor limão, então podemos imaginar que a trégua havia sido declarada.


E assim, a Pepsi sabor limão que nunca teve sabor limão deixou de ter sabor limão para os olhos fechados dos skatistas paranaenses.


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Três histórias quase aleatórias sobre o mesmo tema.


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Por falar em retornar para a mãe, os sumérios são a civilização organizada mais antiga de que se tem conhecimento e viveram onde hoje é a região do sul da Mesopotâmia, entre os rios Tigres e Eufrates e atualmente sul do Iraque e (entre outras maravilhas muito pouco conhecidas por nós) são responsáveis pela mais antiga expressão conhecida para o conceito de liberdade: Ama-Gi, ou literalmente "retorne para a sua mãe".



E aqui o assunto se confunde um pouco.


Na cultura apressada e reducionista dos dias de hoje Ama-Gi é propagada como um símbolo de liberdade por si só, de escrita cuneiforme combinando com bandeiras e imagens nas redes sociais e até tatuagens, e um conceito forçadamente atribuído no sentido inverso, quando a nossa percepção do mundo atual influencia como queremos enxergar os nossos antepassados, da mesma forma ao nosso hábito de antropomorfizar atitudes e sentimentos dos cães baseadas no espelhamento das nossas expectativas e sentimentos humanos sobre eles, um raciocínio simples que mostra quão simplórios conseguimos ser quando queremos enxergar o mundo onde a nossa vida é o centro.


A semiótica como parte da antropologia é o estudo dos significados das condutas e dos processos comunicativos da história dos povos humanos e como tal é tão dependente de contexto tanto quanto é alvo da interferência dos olhos do pesquisador. E a semiótica da expressão Ama-Gi é mais complexa que apenas liberdade, ou ao menos liberdade como enxergamos nos dias de hoje.


A primeira informação que Ama-Gi traz é o fato da antiga Suméria ter sido uma sociedade matriarcal, as mães e não os pais formavam a chefia das famílias e os pontos de referência de linhagem e descendência destas. Quando você pesquisa mais um pouco sobre a tradução do mesmo termo encontramos algo próximo de "retorne ao que você era antes" ou "retorne para onde você pertence", naturalmente remetendo ao conceito atual de indivíduo nascido livre e independente, a base social da cooperação e benefícios mútuos os quais, em teoria, compreendem os regimes democráticos atuais.


Mas na antiga Suméria assim como em praticamente todos os povos antigos a base social era o trabalho escravo, e um escravo só existe através da alienação natal e da morte social, removido de laços comunitários herdados ao nascer e da rede de relacionamentos onde sua humanidade é reconhecida.


Um escravo aos olhos da sociedade suméria era ser de fato um indivíduo livre, sem família nem parentesco ou vínculo com qualquer outro relacionamento humano e sem ser reconhecido como filho, irmão ou amigo de alguém estava então maduro para a escravidão, sem religião e sem a voz de uma autoridade familiar, política ou simpatia comunitária falando em seu nome ou qualquer mecanismo institucional que protegesse a sua condição e lugar nesta sociedade.


O escravo antes de tudo não pertence a nada e vive como posse da classe dominante, livre de todas as obrigações de um filho e cidadão mas vivendo num sistema de dívidas aprisionado em um trabalho onde o salário é poder trabalhar para manter-se vivo e voltar a trabalhar, logo a interpretação mais natural do que de fato significa Ama-Gi seria próximo de alforria, mas não exatamente liberdade e sim o retorno ao seu status natural ao nascer.


O primeiro uso conhecido desta expressão aparece nos registros das reformas do rei Urukagina, 2400 anos antes de Cristo, cuja anotação é muitas vezes citada como o primeiro exemplo de um código legal e reforma governamental na história, informando a isenção de impostos das viúvas e dos órfãos e as despesas de funeral pagas pela cidade (incluindo a comida e bebida oferecida para a viagem dos mortos ao mundo inferior de acordo com a religião do período), decretando o uso da prata nas relações comerciais entre ricos e pobres e garantindo a estes inclusive o direito de não vender os seus bens, produtos e serviços se não tivessem interesse, um avanço social notável no princípio de propriedade privada e por consequência paz comunitária.


O chamado Código de Urukagina também limitou o poder dos sacerdotes e dos grandes proprietários de terras e ainda adotou medidas contra a usura, roubo, assassinato e apreensão de bens de pessoas do povo das classes mais baixas.


Na Terceira Dinastia de Ur a expressão Ama-Gi foi usada de fato como um termo legal para a alforria de indivíduos e está relacionada com a palavra acadiana Anduraāru, significando “liberdade”, “isenção” e “libertação da escravidão (dívida)”.


Como é de se imaginar os sumérios não inventaram o refrigerante mas segundo a Wikipédia a medicina suméria era especialista em laxantes, purgantes e diuréticos cujo uso e crença fariam expulsar os demônios da doença do corpo, feitos a partir de urina, cal, cinzas e sal misturados com leite, pele de cobra, casco de tartaruga, cássia, murta, timo, salgueiro, figo, peras ou tâmaras e então misturavam novamente com vinho formando uma pasta para passar em ferimentos ou ainda mais uma vez misturando com cerveja e ingerida por via oral.


A ideia central era criar no organismo um ambiente desagradável onde nem o demônio gostaria de permanecer.


Não sei dizer, e a Wikipédia muito menos, qual a cor do produto final feito das sobras das sobras das sobras e se havia opção transparente ou ainda se tinha de chacoalhar para beber ou talvez beber de olhos fechados, mas não duvidaria se as expressões "ressaca dos infernos" e "nem o diabo aceita beber isto" surgiram neste período.


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E por falar em liberdade, Stéphane Pompougnac é um dos meus artistas favoritos da House Music desde sempre.


Um dos criadores daquela House francesa classuda e leve, Stéphane foi responsável por mais de uma década pela curadoria do lounge e assinando a sensacional série Hôtel Costes, hotel em Paris onde ele mesmo começou trabalhando como garçom e logo iniciando a carreira de Dj.


Ele representa a terceira geração da House Music digamos, depois da House original dos anos 70 e 80 e da House gritalhona na década de 90 este estilo com base nas melodias de piano dominou todo o início dos anos 2000 até bem poucos anos atrás e nesta série foram mais de 10 lançamentos com o melhor da Lounge Music, Jazz Contemporâneo, Low Bpm e House Music.


Se a House Music é ensolarada, a House francesa é o sol se pondo.


Além das próprias produções ele tem pelo menos um momento especial no currículo: o remix para a Balada de Sacco & Vanzetti do Ennio Morricone (descanse em paz) e Dulce Pontes, na versão com voz da Joan Baez (sim aquela voz absurda do Woodstock).


Remixar Ennio Morricone por si só já é um ato de coragem e ainda mais sobre este tema pois digamos assim, se como eu você acha Rafael Braga um grande injustiçado você precisa pesquisar o que o governo dos EUA fez com os dois italianos exatamente um século atrás.


Não é de hoje que governos fabricam crimes para sufocar o direito de associação e a liberdade de expressão.


Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram dois anarquistas italianos acusados de roubar 15 mil dólares e assassinar um contador e um guarda de uma fábrica de sapatos na década de 20 nos Estados Unidos, na cidade de Braintree no condado de Norfolk, estado de Massachusetts. Foram presos, processados, julgados e condenados à morte e então executados na cadeira elétrica no dia 23 de agosto de 1927, aos 36 e 39 anos de idade respectivamente.



Em 1948 o processo foi revisto por estudiosos e pesquisadores e a conclusão foi de que ambos foram acusados injustamente, vítimas da histeria popular e xenofobia num país empobrecido após a Primeira Guerra Mundial e em uma sociedade avessa aos movimentos sociais e presença cada vez maior de imigrantes.


Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram assassinados pelo contexto do período em que viveram.


Cinquenta anos depois em 23 de agosto de 1977 o governador do estado de Massachusetts Michael Dukakis reconheceu formalmente a inocência de ambos e a injustiça cometida pelo tribunal e reabilitou o nome dos dois italianos.


Here's to you, Nicolas and Bart

Rest forever here in our hearts

The last and final moment is yours

That agony is your triumph


A Balada de Sacco & Vanzetti é muito mais que uma balada ou um remix de House Music, ela é uma ode à verdade, liberdade e justiça, ainda que definitivamente tardias.


Você consegue ouvir ela na abertura do Hôtel Costes Vol. 9, o meu favorito da série (e você pode procurar e aproveitar o embalo e ouvir inteiro).


Eu chamaria esta série de clássica mas na verdade ela é absolutamente atemporal, e este estilo de mixagem (parecendo quase uma mixtape preguiçosa e precisa ao mesmo tempo) eu já considero uma arte perdida só sobrevivendo atualmente entre DJs de Hip Hop.


Claro, não é apenas House Music mas veja bem, a vida não é apenas House Music. Muito provavelmente este CD na época foi colocado à venda por engano na seção de bolero nas lojas (se é que existiu seção de bolero em lojas de discos um dia) e é capaz de aquecer e alegrar qualquer dia da sua vida.


E claro também, às vezes é muito brega mas veja bem de novo, o que pode ser brega para nós na França é estilo de vida.


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Já Rafael Braga até onde eu sei não ganhou nenhuma música sobre ele e geralmente não se tem mais nenhuma menção do seu nome e da sua existência, como tantos e tantos negros no Brasil a invisibilidade o fez virar uma sombra de si mesmo, a profecia autorrealizável na pele quando se trata de justiça e liberdade no nosso país.


Rafael Braga também não era anarquista nem comunista ou ativista de alguma coisa além de ter de procurar o que comer e onde dormir, mas foi preso como se fosse.


No dia 20 de junho de 2013, quando o gigante acordou por causa dos 20 centavos de aumento na passagem de ônibus alegando não ser só sobre 20 centavos Rafael Braga nem sempre voltava para casa, justamente por nem sempre ter dinheiro para pagar a passagem de ônibus do centro até a Vila Cruzeiro onde morava, no bairro da Vila da Penha na Cidade do Rio de Janeiro.


Rafael esteve entre os cinco adultos presos entre mais de 300 mil pessoas que participaram dos protestos embora não tivesse participado e foi abordado na Lapa cerca de três quilômetros longe do tumulto em posse de Pinho Sol e Água Sanitária e preso em flagrante com o material sendo descrito pelos policiais como possível uso para produzir coquetel molotov.


Rafael Braga ficou preso por cinco meses no Complexo Penitenciário de Japeri até ser condenado em primeira instância à uma sentença de cinco anos em regime fechado por porte de material explosivo e passou a ser defendido por advogados do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), que conseguiram a redução da pena de cinco para quatro anos e oito meses (pode rir) sem possibilidade de recorrer em liberdade.


Em menos de um ano preso conseguiu um trabalho formal de auxiliar de serviços gerais por bom comportamento e ter a pena reduzida em um dia para cada três dias de trabalho, e passou a trabalhar como faxineiro no escritório de advocacia que fazia sua defesa.


E quando tentaram transformar Rafael num símbolo, a sua vida piorou consideravelmente.



No dia 30 de outubro de 2014 voltando do trabalho para dormir no presídio Rafael posou para uma fotografia de frente para um muro ao lado do portão do presídio onde estava escrito a frase:


"Você só olha da esquerda p/ a direita, o Estado te esmaga de cima p/ baixo!!!"



A imagem foi postada na página do Facebook do DDH e ao tomar conhecimento a diretora do instituto penal puniu Rafael Braga com dez dias numa cela solitária, segundo ela por "veicular de má-fé, por meio escrito ou oral, crítica infundada à administração prisional;".


Logo depois o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro pediu regressão do regime semiaberto para fechado por considerar que houve evasão mas a Vara de Execuções Penais não acolheu a denúncia e Rafael continuou a trabalhar. No dia 1º de dezembro obteve o direito de cumprir prisão domiciliar na casa dos familiares com uso de tornozeleira eletrônica mas pouco mais de um mês depois, na manhã do dia 12 de janeiro de 2016 Rafael Braga foi novamente abordado no bairro Vila Cruzeiro e detido supostamente com 0,6g de maconha e 9,3g de cocaína, negou que as drogas eram suas e a defesa afirmou a possibilidade do flagrante ter sido forjado.


Em 20 de abril de 2017 foi condenado a onze anos e três meses de reclusão em regime inicial fechado e pagamento de 1.687 dias-multa por tráfico de drogas e associação ao tráfico e na mesma sentença foi concedido permanecer em prisão domiciliar para tratar da tuberculose que adquiriu na prisão.


Esta é a parte divertida (leia com ironia).


A parte triste é que Rafael não teve sequer a sorte (leia com um pouco mais de ironia) de ter sido morto violentamente para se tornar símbolo e slogan de grafiteiros de classe média e posts e hashtags, Rafael pertence a classe onde as ideologias não chegam e as ONGs chegam, lucram, elegem políticos e somem, a dos negros pobres e invisíveis em uma realidade a qual só negros pobres e invisíveis conhecem: a surra, a prisão, o indiciamento, suspeita e condenação sem provas (e você saber ser esta a rotina) e no fim sim, Rafael deu sorte (leia com mais ironia ainda) de ao menos ter entrado para a história e ser lembrado de tempos em tempos.



Rafael Braga poderia ser um símbolo de superação e vitória na busca pela liberdade mas na verdade nasceu e vai morrer andando na linha entre a resiliência e a resignação como um símbolo da bola de ferro que saiu dos pés e foi para o pescoço, um Sísifo que antes de poder empurrar a pedra montanha acima tem de lidar com uma figura mitológica monstruosa de três cabeças (executivo, legislativo e judiciário) e duas caras e ser esmagado para provar que o estado não esmaga, uma forma metafórica de enforcar um ser humano em praça pública e destruir qualquer chance da sua imagem servir de exemplo real de justiça para se provar como exemplo da opressão do poder.


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Ama-Gi é especial não por simbolizar a liberdade, que agora sabemos não cumprir exatamente este papel, mas por sua história representar para mim a dúvida e o motivo pelo qual nunca devemos abraçar a primeira perspectiva sobre qualquer tema, pessoa ou até mesmo (eu diria principalmente) ideologia, como disse Richard Dawkins:


- A certeza é para os fracos, só a dúvida leva adiante.


Ou melhor ainda, como no provérbio latino:


- Ubi dubium ibi libertas.


Em bom português:


- Onde há dúvida, há liberdade.



Talvez Ama-Gi em todo o seu contexto histórico e semântico represente de fato a liberdade no sentido mais puro da palavra, o qual não entenderíamos nos dias de hoje, porque perdemos uma arte que também já pertence ao passado: questionar.



Quando você pensar e acreditar ser livre e capaz de pensar por si mesmo lembre de mais uma pequena história sobre enganar os seus olhos: você pode não tomar refrigerante e ser adepto de suco natural de laranja por exemplo.


O suco natural da laranja também perde naturalmente a cor e naturalmente também decanta no fundo em poucas horas, mas sem perder o sabor ou qualidade, basta agitar e beber.


Mas quando as pessoas vão no supermercado comprar suco de laranja natural elas tendem a rejeitar se estiver com esta aparência por pensarem estar estragado e fora da validade.


E o que as empresas de suco de laranja natural fazem a respeito?


Campanha de conscientização?

Tutorial para chacoalhar o suco?

Uma representante da empresa fantasiada de meia laranja em cada supermercado lançando o desafio do suco esbranquiçado?


Não, fazem o mesmo suco chegar até você com corantes e espessantes artificiais para ele ter aos seus olhos a aparência de um suco natural recém feito no liquidificador da sua casa.


O seu suco natural é artificial para parecer natural para você porque você mesmo pediu por isto.



Como falar sobre liberdade se a nossa mente nos engana o tempo todo e quando nos distraímos somos enganados por quem em teoria deveria nos defender?


Liberdade não é conforto, é vigilância constante.

A liberdade não afaga, ela espeta.



Eis o problema e a exata solução do problema de escrever sobre liberdade, ela tem gosto e aparência diferentes para cada pessoa, ela é sua, pertence ao indivíduo e ninguém te engana a respeito dela se você não permitir e ninguém pode te dar algo que sempre foi seu, nós mesmos fabricamos as nossas próprias armadilhas querendo ver nela uma cor diferente ou fechando os olhos para ela ter outro gosto e quando nos damos conta perdemos o ingrediente mais caro do universo, e só nos sobram as sobras das sobras.


Se a verdade é libertadora para aceitar ambas, verdade e liberdade, é preciso primeiro admitir estar vivendo em uma mentira dentro de uma prisão.


E ninguém quer sair de uma prisão quando ela já parece confortável.


Liberdade hoje em dia é um tema quase proibido de se falar a respeito e ao contrário da condição dos escravos da cultura suméria quando o silêncio sobre ela é imposto chegamos em um ponto sem retorno.



É sabido existirem emoções e sentimentos cujos sentidos e significados mudam com o tempo e alguns já são considerados até mesmo extintos na história da humanidade.


Por exemplo, a geração de jovens atual na década de 2020 (os tais zoomers cuja maior conquista até agora é digitar pelos polegares e ter pela primeira vez na história índice de QI menor que as gerações anteriores) não vai conhecer a nostalgia, e a próxima geração não vai conhecer a liberdade.


E como falado linhas e linhas antes, este é um livro sendo escrito em tempo real e aqui encerro a primeira parte que chamei de Tríade da Incompreensão: morte, vida, liberdade.


A morte é sobre empatia, a vida é sobre gratidão e a liberdade é sobre resiliência.


As pessoas começam a entender a empatia quando precisam dela, a gratidão quando perdem tudo e a liberdade quando ela deixa de existir.



E se a morte tem cheiro de maçã e a vida cheiro de limão e se a liberdade varia de cor e sabor de pessoa para pessoa, pelo menos eu posso escolher a cor e o sabor da minha.


E para mim a liberdade tem cor e sabor de sorvete de melão.


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Cápsula do tempo.


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Se você chegou até aqui você já sabe, um novo ensaio/capítulo sendo escrito, revisado e postado a cada quinze dias, uma memória gera um ensaio e um ensaio traz uma nova memória e assim por diante.



A ideia é se deixar levar pelo fluxo de consciência com o mínimo de influência externa possível e tornar os textos mais atemporais e fluídos.



Eu decidi começar escrevendo sobre a morte e a empatia inspirado por lembranças minhas do trabalho e da vida, a sequência natural do segundo ensaio foi falar sobre a vida e gratidão e agora sobre a liberdade e resiliência, e por uma infeliz coincidência do destino estamos em um dos momentos mais angustiantes da história do Século 21 sendo escrito também em tempo real, invariavelmente contaminando o nosso espírito e aqui vem mais uma coincidência incrível:


No dia 23/02/2022 eu publiquei o link e a guia com a imagem que abre este ensaio, um dia antes da Rússia oficialmente invadir a Ucrânia, e hoje dia 08/03/2022 comemora-se o dia internacional da mulher, mas na história russa o dia 23 de fevereiro de 1917 e o dia 08 de março do mesmo ano (exatos 105 anos atrás) são exatamente a mesma data, confusão causada pela diferença entre os calendários Juliano seguido pelos russos na época e o Gregoriano ocidental.


E esta é a data considerada o início da Revolução de Fevereiro de 1917, o primeiro evento da Revolução Russa que deu poder aos bolcheviques.


E hoje, exatamente agora em 2022, 105 anos depois, as pessoas no mundo inteiro já estão implorando por mais guerra acreditando estarem torcendo pela paz e por mais escravidão acreditando estarem pedindo mais liberdade.


Liberdade deveria ser o tema mais leve de todos, até mesmo porque é muito fácil romantizar o conceito de ser livre, mas o simples fato das pessoas pedirem por mais liberdade já é prova da perda dela.


A liberdade é mais importante que a vida pois não existe vida sem liberdade, estas linhas serão revisadas um dia (já foram e você está aqui) se fizerem parte de um livro impresso de fato mas eu tenho poucas preocupações a respeito de estar certo ou errado em chutar previsões, a minha grande preocupação não é pensar a respeito do futuro mas sim tentar descobrir porquê as pessoas não prestam atenção ao passado.


Então para entender como chegamos até o marco zero da possível Terceira Guerra Mundial e a relação com o Dia Internacional da Mulher somente voltando no tempo um ano antes da Revolução de Fevereiro e falarmos sobre o dia mais triste da história da humanidade.


Mas ainda não é hora, guarde este gancho e por enquanto vamos apenas falar de melão, segue.


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