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ENSAIO 57: TIETÊ

Foto do escritor: LFMontagLFMontag

Atualizado: 24 de out. de 2024



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um libro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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16/07/2024


TIETÊ


Apanha e bate de volta, todos os dias.


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Quando você chega em Salesópolis, a quase 1200 metros acima do nível do mar, a decepção é quase inevitável e absolutamente sem graça se você não prestar atenção nos detalhes ou não souber do que se trata, mas ao olhar a água e desenhar mentalmente um triângulo imaginário no centro, cada uma das pontas do laguinho é uma das três nascentes do Rio Tietê.


Esta poça possui apenas 30 cm de profundidade e mesmo assim as três nascentes insistentes e quase subterrâneas produzem mil litros de água limpa e potável por hora, criando a primeira cachoeira menos dez quilômetros adiante.


Apesar de nascer em plena serra e perto do mar o Tietê faz parte da turma dos interessantíssimos rios teimosos chamados de endorreicos, ao invés de ir em direção ao oceano as suas águas fogem para o interior do país, justificando a tradução do seu nome na língua Tupi–Guarani (ti – rio e ete – grande, fundo, verdadeiro, que corre para baixo).


Fujão, teimoso, insistente e resiliente, o Tietê é seguidas vezes atacado e espancado pela ação humana percorrendo 1136 quilômetros ao longo de todo o interior enquanto atravessa o Estado de São Paulo se escondendo, se mostrando, morrendo e renascendo tantas vezes quanto forem necessárias, ora poluidíssimo, ora limpíssimo, até desembocar no Rio Paraná ajudando a formar a fabulosa Bacia do Rio da Prata (a segunda maior bacia hidrográfica do Brasil, só perdendo para a nossa Bacia Amazônica, a maior do mundo) e desce até o sul do país, atravessando e contornando Paraguai e Uruguai e enfim desaguando no mar através do Rio da Prata, já em Buenos Aires na Argentina.


Como se fosse pouco a Bacia do Rio da Prata se encontra dentro do também fabuloso Aquífero Guarani, o maior reservatório subterrâneo de água doce do planeta, de onde a conclusão simples é que se viver é resistir o Tietê é um guerreiro e se a vida brota de dentro da terra, o Brasil é cheio dela.


Uma Jornada do Herói de várias pequenas jornadas onde grandes inimigos poluem e pequenos amigos afluem incentivando a seguir em frente em beiras onde Zeus e Netuno sentariam e molhariam os pés, o mitológico Tietê antes de ser um rio, é uma metáfora.



O nosso gigante pela própria natureza apanha e bate de volta todos os dias e nos mostra que não interessa quão pequeno seja no começo e nem quanto se apanhe no caminho, se você deixar se deixar levar (e for teimoso o suficiente) algo grandioso te espera no final.


E claro, no meio do caminho você pode aproveitar para confundir e incomodar bastante as pessoas, como os ipês.


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Cápsula do tempo.


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Depois de quase três anos metralhando palavras, linhas, parágrafos e ensaios ele chegou, o bloqueio criativo, cavalgando em cima de uma síndrome do impostor galopante.


Por coincidência ontem achei um print de uma thread do Anthony Bourdain no Reddit quando perguntaram para ele o que era mais difícil, cozinhar ou escrever, e a sua resposta foi:


- Cozinhar é difícil, escrever é um privilégio, quem reclama estar sofrendo de bloqueio criativo deveria limpar lulas por um dia.


Só posso concordar discordando desta falsa simetria, eu gosto de cozinhar para os outros e escrever para mim, mas não preciso fazer nenhum um dia inteiro e nenhum dos dois paga as minhas contas, então sou duplamente privilegiado.


Ainda bem que chegou o ciclo da teimosia e logo tudo entra nos eixos de novo, e amanhã vou conseguir cozinhar, então será um dia legal.


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