ENSAIO 79: MUSHIN
- LFMontag
- 2 de jun.
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Atualizado: 2 de jun.

Foto: Robson Ramon
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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02/06/2025
MUSHIN
Uma maratona, uma guerra sem fim, duas bombas.
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Há uma lenda não confirmada como japonesa e ela diz que todos nós temos três faces:
A primeira nós mostramos ao mundo, cuidadosamente elaborada para nos encaixarmos e sermos aceitos, e usamos ela como máscara para esconder nossas inseguranças e parecermos fortes mesmo quando não somos.
A segunda face nós mostramos aos amigos próximos e família; a versão de nós mesmos que nos sentimos seguros o suficiente para compartilhar, mas ainda filtrada e guardada em alguns lugares.
Mas a terceira face, a qual nunca mostramos para ninguém, é onde reside a verdade.
É bruta, crua e real, e indisfarçável.
Ela contém as partes de nós que ainda estamos tentando entender, os sonhos dos quais temos medo de falar e os medos os quais tentamos esconder até de nós mesmos.
Essa terceira face não foi feita para o mundo e encaramos ela quando estamos sozinhos, olhando em silêncio o nosso próprio reflexo e talvez, só talvez, seja aquela que mais vale a pena conhecer.
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Ikizukuri (do japonês "preparado vivo") é a preparação de sashimi, o peixe cru mas ainda vivo (polvo, camarão e lagosta também podem ser usados); a prática é controversa e proibida em dezenas de países no ocidente devido preocupações com o sofrimento do animal, pois o mesmo é servido se mexendo.
Os restaurantes onde se praticam essa culinária podem ter um ou vários tanques com os animais vivos para o cliente escolher e há diferentes estilos nos quais o chef pode servir o prato, sendo mais comum com os filés de carne montados sobre o corpo do próprio animal, geralmente apresentando a cabeça inteira para mostrar os movimentos contínuos das guelras e a técnica principal de preparo consiste em realizar apenas três cortes de faca.
Em consequência ao Ikizukuri temos o Odorigui (literalmente "comer dançando"), o consumo destes animais ainda em movimento, e apesar do choque e visível crueldade muitos defensores dessa cultura veem o ato como uma prova da pureza do ingrediente principal do prato e uma maior conexão entre a natureza da comida, quem prepara e quem consome o produto final.
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Mushin é um conceito central em todas as tradições filosóficas e marciais japonesas, especialmente no Budô (caminho das artes marciais) e no zen-budismo, uma abreviação de "Mushin no Shin", expressão que pode ser traduzida literalmente como "mente sem mente" ou "ausência de mente intencional/consciente".
O conceito de Mushin descreve um estado mental de ausência de pensamentos fixos, racionalizações, emoções ou intenções premeditadas, permitindo que a pessoa atue de maneira espontânea e natural, sem hesitação nem bloqueios mentais; não uma mente vazia ou apática mas sim livre de perturbações externas e internas, a qual responde de forma direta e fluida às circunstâncias sem o ego ou o raciocínio analítico atrapalhando a ação.
Na prática das artes marciais o Mushin é considerado o estado ideal no qual o praticante consegue reagir instantaneamente a um ataque ou a uma situação (sem ser impedido por dúvidas, medos ou reflexões demoradas), estado atingido através da disciplina e anos de treino e extensa repetição e meditação até as técnicas serem abstraídas e se tornarem uma extensão natural do corpo e da mente.
Além das artes marciais o Mushin também pode ser aplicado em outras atividades como a cerimônia do chá, na caligrafia e na vida cotidiana como uma filosofia para agir com serenidade, equilíbrio e presença plena, se provando como um exemplo clássico da influência do zen-budismo na cultura japonesa ao valorizar a simplicidade, a naturalidade e a harmonia entre ação e mente.
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Três histórias não mentais sobre três pequenos grandes japoneses teimosos.
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Shiso Kanakuri nasceu em 20 de agosto de 1891 em Nagomi, na província de Kumamoto no Japão, e é considerado o pai da maratona japonesa e um dos primeiros atletas japoneses a participar de uma Olimpíada, representando o país nos Jogos Olímpicos de Estocolmo em 1912, quando sofreu com o calor extremo durante a competição e acabou desmaiando durante a prova, sendo resgatado por uma família sueca.

Envergonhado, retornou ao Japão sem notificar os organizadores, que o deixaram registrado como desaparecido por décadas.
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Tsutomu Yamaguchi nasceu no dia 16 de Março de 1916 na cidade de Nagasaki e no dia 06 de Agosto de 1945 estava cumprindo o seu último dia de contrato de três meses de trabalho para a Mitsubishi na cidade de Hiroshima quando a primeira bomba atômica da história explodiu a 3 quilômetros de onde ele se encontrava.
Ficou parcialmente surdo e cego, em estado de choque e com queimaduras pelo corpo.
Quando se recuperou é desnecessário, e até inenarrável, descrever o que ele viu.
No mesmo dia encontrou alguns colegas de trabalho e eles decidiram ir para Nagasaki procurar por melhor tratamento de saúde e ficar perto de suas famílias; chegaram no dia 08 de Agosto e no dia seguinte, mesmo ferido, Tsutomu decidiu ir trabalhar.
Neste período o Japão já havia declarado guerra total, significando que todo cidadão maior de idade era considerado apto para lutar e trabalhar nos esforços de guerra, e pelos mesmos motivos toda cidade japonesa era considerada um alvo militar; o próprio Tsutomu era engenheiro e trabalhava projetando navios em uma época onde se dez navios fossem lançados ao mar e um retornasse, o trabalho era considerado um sucesso.
E o estado de guerra ao mesmo tempo também significava o controle máximo da compartimentalização e circulação de informações pelo império japonês dentro da sua própria nação, de modo que quase ninguém em Nagasaki soube ou acreditou sobre o ocorrido em Hiroshima pois todas as grandes cidades japonesas, principalmente as portuárias, já haviam sido intensamente bombardeadas pelo exército norte-americano, mas apenas uma única bomba causar tanto estrago e mortes parecia ruim demais pra ser verdade.
Na manhã de 09 de Agosto de 1945 Tsutomu estava contando o que viu para o seu chefe igualmente desacreditado quando a segunda bomba atômica da história atingiu a sua cidade natal.
E mais uma vez, duplamente desnecessário descrever o que aconteceu a seguir.
Novamente Tsutomu estava duplamente vivo e morto/morto e vivo ao mesmo tempo e apesar de ter estado praticamente no hipocentro de ambas as explosões, sobreviveu e viveu o bastante para se perguntar o que parece ser pior: morrer jovem sem a chance de escrever a própria história ou sobreviver e só ter uma história horrível para contar?
E nenhuma das opções ser escolha sua?
E não só isso, Tsutomu viveu décadas seguintes assistindo a expansão do programa de bombas nucleares em praticamente todos os continentes em silêncio e passou a velhice escrevendo poemas narrando para si mesmo seu testemunho e, somente após a morte da sua esposa, viveu os últimos anos da sua vida viajando como ativista anti-proliferação de armamento nuclear.

Viveu na angústia como se desejasse a morte (que de fato desejou) e morreu sem conseguir a paz (que de fato tentou).
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Hiroo Onoda nasceu em 19 de março de 1922, na cidade de Kainan, província de Wakayama, e ficou conhecido como um dos últimos soldados japoneses a se render após a Segunda Guerra Mundial, vivendo escondido na selva das Filipinas por quase 30 anos.
Enviado à ilha de Lubang em dezembro de 1944 como oficial de inteligência do Exército Imperial Japonês, Onoda recebeu ordens de nunca se render e continuar com operações de guerrilha e mesmo após o fim da guerra em 1945 ele se recusou a acreditar na rendição do Japão (considerando os panfletos lançados pelos aviões como propaganda inimiga), e nas décadas seguintes sobreviveu na mata caçando, colhendo frutas e realizando pequenos ataques, acreditando ainda estar em combate.
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Em 1967, mais de 50 anos após a maratona incompleta de Estocolmo, Shiso retornou à Suécia a convite de um programa de televisão para completar simbolicamente a competição, encerrando o percurso com um tempo total de 54 anos, 8 meses, 6 dias, 5 horas, 32 minutos e 20,3 segundos e então continuou sua trajetória como um importante educador físico e incentivador do atletismo no Japão e fundando várias competições de longa distância no país, ajudando a consolidar o prestígio das corridas de resistência.
Apesar de sua (des)motivação inicial ter sido a vergonha por não concluir a prova original, o seu legado é celebrado até hoje como símbolo de perseverança e espírito esportivo, retratado em diversos programas de televisão, peças teatrais e livros no seu país natal, além de ter inspirado documentários sobre as origens da participação japonesa nas Olimpíadas e frequentemente lembrado em obras retratando a história olímpica e o esporte japonês.
Shiso faleceu em 13 de novembro de 1983, na cidade de Tamana, também em Kumamoto.
Tsutomu passou mais de 60 anos lidando em silêncio com suas memórias principalmente para preservar a sua família mas aos 93 anos de idade e no último ano da sua vida pediu reconhecimento do governo como sobrevivente duplo.
A história de Stanislav Petrov e seus cinco nãos seguidos nos servem de felizmente poder acordar e lembrar de um pesadelo nunca ocorrido mas claro, como podemos imaginar ao lembrar da era da paranoia atômica nem todos tiveram a mesma sorte, e algumas dezenas tiveram duas vezes o mesmo azar, existiram cerca de 160 sobreviventes duplos conhecidos na história do país, chamados de Niju Hibakusha, mas somente Tsutomu possui o reconhecimento oficial.
E quase um ano depois desse reconhecimento, morreu de câncer no estômago.
O comediante britânico Stephen Fry em uma atitude infeliz em 2010 fez uma pergunta em tom de piada ao falar sobre Tsutomu, perguntando se ele seria o homem mais sortudo ou o mais azarado da história.
Obviamente toda ironia é uma boa ironia e toda ironia é doída mas na verdade é impossível decidir entre o que pode ser pior: Morrer jovem por uma bomba (a primeira ou a segunda) ou viver o suficiente para envelhecer e passar o resto da vida não apenas com esta lembrança, mas conviver com e testemunhar pela vida toda as consequências e mortes causadas pela radiação no seu país, na sua cidade natal e na sua família.
Tsutomu Yamaguchi faleceu em 4 de janeiro de 2010, também em Nagasaki.
Em 1974, Hiroo Onoda finalmente foi convencido a se render após seu ex-comandante ser localizado e ir pessoalmente até a ilha para revogar oficialmente suas ordens e ao retornar ao Japão foi recebido como herói nacional, embora sua história também tenha gerado controvérsias e reflexões sobre o fanatismo e a obediência militar.

A vida de Onoda inspirou livros, filmes e documentários como "Onoda: 10 000 Nights in the Jungle" (2021), uma produção internacional que dramatiza sua longa permanência na selva filipina (reforçando seu lugar como um dos personagens mais emblemáticos do século XX) e ele mesmo publicou sua autobiografia intitulada "No Surrender: My Thirty-Year War", que virou referência sobre sua experiência.
Onoda faleceu em 16 de janeiro de 2014, em Tóquio.
Ironicamente não, não foram as bombas de Hiroshima e Nagasaki que forçaram a rendição do Japão, mas sim a entrada da URSS na guerra contra o país no exato mesmo dia do ataque nuclear de Nagasaki.
Até agosto de 1945 Tóquio por exemplo já havia perdido quase 100 mil vidas para os constantes bombardeios aéreos do exército norte-americano, e como nós já sabemos presidentes e imperadores são ótimos em mandar o povo lutar até o último homem, desde que este último homem não seja um presidente ou um imperador.
Mas, quando os soviéticos romperam o tratado de neutralidade e o exército invadiu a Manchúria ocupada pelo exército japonês, os japoneses então decidiram se render aos norte-americanos porque na visão deles os Estados Unidos (ao contrário da União Soviética) preservariam o seu imperador e a cultura do país, o que de fato acabou se concretizando e marcando assim o final da Segunda Guerra Mundial e início da ocupação e reconstrução do Japão.
A narrativa de que as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram a real motivação da rendição serviu duplamente (e silenciosamente) para ambos os países, os Estados Unidos ficariam com a fama e imagem de grandes vitoriosos e salvadores do ocidente e o Japão com a imagem de uma das maiores vítimas da guerra, jogando assim uma nuvem cinzenta sobre ambas as nações encobrindo as relações nazistas de uns e os campos de concentração de outros.
É muito fácil romantizar a guerra fria, principalmente para quem não viveu ela, foi com toda certeza a guerra onde mais armas foram criadas e produzidas com o propósito de não serem utilizadas, além de revoadas e mais revoadas de aviões que nunca soltaram uma bomba sequer, pássaros de um mal presságio que nunca se concretizou pois como costuma-se dizer por aí: para ter paz é preciso dominar a guerra, e para dominar a guerra é preciso mostrar poder.
O sonho de todos é o pesadelo controlado de alguns e poucos países podem jogar este jogo e menos países ainda poderiam jogar até o fim onde novamente todos perderiam, a guerra fria foi a guerra dos que puderam e felizmente não quiseram.

O Japão é um país maravilhoso e estranho, de hábitos estranhos ora cruéis ora edificantes, de filosofias teimosas e criadora de heróis improváveis e perdedores incríveis, provavelmente o país com mais memoriais para cada evento histórico e que ao mesmo tempo reprime a memória e a voz dos próprios cidadãos, num mundo onde todos temos três faces e onde uns correm uma maratona sem parar, outros lutam uma guerra sem fim, e outros ainda fogem ao encontro de dois lugares onde duas bombas seguidas decidem cair.
E existe uma estranha beleza em peixes sendo comidos vivos e em não desistir, não se render e não morrer.

E por falar em resistência (e ainda sobre teimosia), eu quero falar sobre o melhor conselho de todos os tempos: em qualquer situação, vá de Britney.
Ela mesma, Britney Spears.
Eu explico, segue.
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Em tempo, um outro conceito muito bacana é o Ureshii ("feliz"), quando alguém se sente genuinamente satisfeito ou tocado por algo — como receber uma mensagem gentil, rever um ente querido ou vivenciar um momento simples, mas significativo.
Ao contrário de expressões mais ruidosas de alegria, ureshii frequentemente carrega um tom de calor silencioso, gratidão e sinceridade emocional, uma sensação interior de contentamento em vez de uma celebração externa.
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Cápsulas Cadavéricas do Tempo.
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Por falar em morto-vivo dois irmãos foram presos por manterem corpo do pai por meses dentro de casa no Rio de Janeiro, o esqueleto de idoso de 88 anos estava sobre a cama em um quarto com as janelas vedadas e a polícia investiga como fraude para recebimento de benefícios do INSS como se ele ainda estivesse vivo.
Depois do bebê reborn, agora temos o vovô redead.
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