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ENSAIO 05: CANUDOS

Atualizado: 18 de dez. de 2023



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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05/04/2022


CANUDOS


Três promessas, dois calotes, duas fofocas, uma guerra, um massacre e o nascimento da primeira favela.


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Dia 04 de Novembro é comemorado o Dia da Favela e dia 07 de Novembro de 2021 marcou 125 anos do início da Guerra de Canudos, datas geralmente ignoradas embora ambas estejam ligadas nas suas origens e sejam emblemáticas para entender muito sobre a nossa sociedade.


Em outubro de 1896 Canudos era uma comunidade pacífica e independente no interior do Estado da Bahia quando Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro e líder religioso e comunitário do local, pagou adiantado por uma remessa de madeira nunca entregue e logo após surgiram boatos de que ele e seus conterrâneos iriam atacar Juazeiro para buscar a carga e saquear a cidade.


No mês seguinte, no dia 07 de Novembro de 1896, o governo do Estado da Bahia mandou cem soldados para defender a cidade e o pelotão decidiu por conta própria se deslocar e atacar os moradores de Canudos, sendo derrotados na cidade intermediária de Uauá.


Em janeiro de 1897 o governo do estado decide enviar outro destacamento militar e atacar Canudos novamente, sofrendo mais uma derrota e perdendo mais de cem soldados.


Dois meses depois o governo federal aproveita o pedido de socorro do governo da Bahia como pretexto para mais uma vez atacar e tentar destruir Canudos com mais de mil soldados, sendo novamente derrotados e então incitando na população civil o boato de que Antônio Conselheiro e os moradores de Canudos pretendiam reinstaurar a monarquia no Brasil e representavam uma ameaça para a paz e a recém fundada república brasileira.


A partir do mês seguinte, entre abril e outubro de 1897, Canudos foi atacada por mais dois destacamentos do exército do Estado do Rio de Janeiro formados por quatro mil soldados cada e convencidos pelo governador de que se vencessem a guerra haveria como prêmio para cada soldado uma casa e um terreno quando retornassem.


Em menos de um ano mais de vinte mil pessoas e cerca de cinco mil soldados a serviço do governo morreram no maior crime cometido pelo estado contra seres humanos na história do Brasil.



No final da guerra o governo anunciou e prometeu preservar a vida e a liberdade de todos os que se rendessem mas ao invés disso todos foram ou degolados ou sequestrados e vendidos como escravos, principalmente mulheres e crianças, inclusive como escravas sexuais.



Ficaram tristemente famosos os jaguncinhos, crianças sem pai nem mãe distribuídas aleatoriamente pelo país, sendo adotadas ou também tornadas escravas das famílias que as recebiam.


Logo após o fim da guerra o governo do Estado do Rio de Janeiro também não cumpriu a promessa nem com os seus próprios soldados e os sobreviventes ao regressarem ocuparam a região do então Morro da Providência na capital, sendo apelidados de favelados por causa das marcas dos espinhos da vegetação da região de Canudos formada pelas árvores da espécie Cnidoscolus quercifolius, conhecidas como favelas ou faveleiras, mudando o nome para Morro da Favela como lembrança.



Um fato curioso sobre a faveleira é que a raspa do seu tronco é um potente cicatrizante até mesmo para as feridas causadas pelos seus próprios espinhos, confirmando outra máxima da natureza de que o veneno e a cura muitas vezes se encontram no mesmo organismo. E mais ainda, os próprios espinhos envolvem o fruto da faveleira que por sua vez envolve as sementes oleaginosas semelhantes às favas, de onde originou-se o seu nome popular.



Nascia assim a primeira favela, cujo nome apareceu oficialmente pela primeira vez três anos depois no dia 04 de Novembro de 1900 no comunicado de um delegado para o prefeito da cidade pedindo medidas urgentes para a região, em suas palavras considerada suja, violenta e habitada por pessoas de baixa moral e caráter, e apenas vinte anos depois de sua fundação já era considerada o lugar mais violento da Cidade do Rio de Janeiro.



De resto a história é relativamente conhecida, a remoção forçada dos cortiços do centro e da área portuária para os entornos dos morros sem um plano de habitação dos desabrigados, o fim da escravidão sem um plano de absorção social dos ex-escravos e a migração maciça de nordestinos fugindo da seca e em busca de melhores condições de vida nas capitais do sudeste brasileiro e logo as favelas fariam parte da paisagem de toda a cidade e da geografia dos morros para nunca mais mudar.



07 de Novembro de 1896, 125 anos da Guerra de Canudos: uma promessa, um calote, duas fofocas, mais uma promessa, uma guerra, mais uma promessa, um massacre, mais um calote e o nascimento da primeira favela.


E a prova de que o estado tem aversão à liberdade.


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Quase cem anos antes, o Príncipe Regente João VI de Portugal fugia do país e das tropas de Napoleão Bonaparte em direção ao Brasil no dia 29 de novembro de 1807 junto de sua mulher, a princesa Carlota Joaquina, a rainha-mãe Dona Maria (conhecida como Maria, a Louca) e o príncipe Pedro que num futuro breve se tornaria o primeiro Imperador do Brasil, em quinze embarcações trazendo uma estimativa mais de 10 mil pessoas entre nobres, prelados da igreja e funcionários de estado além de criados e tripulantes, chegando na Baía de Todos os Santos na costa brasileira no dia 22 de janeiro de 1808.



Um mês depois, no dia 24 de Fevereiro de 1808, a comitiva portuguesa saída do Estado da Bahia para então chegar e se estabelecer definitivamente na Cidade do Rio de Janeiro no dia 07 de Março e desembarcando no dia 08, cidade que apesar de já ter o status oficial de capital do país desde 1763 ainda era uma comunidade pequena de apenas 46 ruas e 60 mil habitantes.


Com a chegada de 10 mil novos moradores da noite para o dia a coroa real editou uma lei permitindo seus funcionários confiscar qualquer casa ou prédio para se instalar como morada ou ocupação funcional e assim milhares de casas foram marcadas com as letras “PR” de Príncipe Regente, indicando que o morador deveria desocupar imediatamente o imóvel e dar lugar a um membro da coroa ou comitiva portuguesa, sigla que rapidamente ficou conhecida entre os locais como “Ponha-se na Rua!" ou até mesmo “Prédio Roubado!”


Apesar do confisco do espaço a maioria dos recém-chegados pagava aluguel para morar, criando uma especulação imobiliária onde os cerca de 200 grandes proprietários locais se beneficiaram por possuir mais de 20% dos imóveis da cidade, que também viu toda a sua rotina e organização ter de se adaptar às novas exigências e costumes dos novos moradores desde o abastecimento de alimentos e outros bens de consumo incluindo itens de luxo, o aumento dos aluguéis e taxas de impostos por toda a cidade, novos padrões de modas e costumes e também a criação de novos níveis de padrões sociais e comportamentais, incluindo até mesmo o ritual do beija-mão, o ato de reverenciar e se curvar diante de nobres, gesto considerado na cultura da época como bondade e gentileza da parte de quem estende a mão, e sorte de quem se curva e beija.


Muitos destes proprietários recuperaram seus imóveis oferecendo influência local, favores e outros bens materiais em troca nascendo assim (ou pelo menos naturalizando-se) o conluio, o compadrio, o puxa-saquismo, a corrupção e a promiscuidade na relação entre estado e grandes empresários e proprietários em detrimento da população geral e a troca de favorecimentos que desde então fazem parte da cultura e organização social e política não só da Cidade e Estado do Rio de Janeiro, mas também de todo Brasil.


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Na clássica política de preservação de uma imagem ilusória que se alterna entre tapar o sol com a peneira e empurrar a sujeira para debaixo do tapete é de se esperar que velhos problemas adquiram novos nomes e não seria diferente com a cultura do despejo, a antiga sigla "PR" no Rio de Janeiro passou a atender por “SMH” de Secretaria Municipal de Habitação e seu novo apelido mudou de "Ponha-se na Rua!" para “Saia do Morro Hoje!", ativada sempre que a cidade precisa fingir ser na realidade a propaganda veiculada nos órgãos de turismo e segurança pública, empurrando a pobreza para mais longe ou mais alto, garantindo um ambiente mais fotogênico e temporariamente mais seguro para visitantes estrangeiros, patrocinadores de eventos e classes altas consumidoras.


Foi assim por exemplo quando o Papa João Paulo II decidiu passar as noites na casa do Arcebispo Eugênio Sales no Morro do Turano em 1997 e os expurgos de comunidades pobres perto das estruturas oficias na Copa do Mundo em 2014 e nos Jogos Olímpicos de 2016, causando mortes e desabrigados pela ação das mãos do estado.


Não que as pessoas se importem ou pareçam perceber.


Um pesquisador (se não me engano da USP) mostrou que a presença e ação de policiais altamente armados e equipados resolve a violência urbana por um tempo mas logo os traficantes em reação também passam a se equipar e se armar mais, sabendo de antemão que quanto mais armado estiver um policial maiores as chances de ser sumariamente morto, criando um processo de retroalimentação contínua da violência causada pela tentativa de inibição apenas pela força, quase nunca percebida por quem não é alvo direto da ação dela, como bem mostrou também outro pesquisador ao relacionar a redução real da violência e a propaganda estatal, comparando os investimentos na área e a percepção da população local para concluir que, onde o investimento foi maior em propaganda as pessoas tiveram tendência a acreditar na diminuição da violência mesmo quando na prática houvesse aumentado.


Seres humanos podem ser incitados para cometer atos violentos acreditando estarem buscando a paz e convencidos de que a paz os rodeia mesmo quando a violência aumenta e é por isso que políticos investem em promessas para conquistar cargos e em propagandas para se manter neles e pelo mesmo motivo a população brasileira não só tolera mas também aceita a corrupção como parte das relações e, tal qual tapar o sol com a peneira ou empurrar a sujeira debaixo do tapete, todo e qualquer ato de corrupção parece ser aceitável desde que possa ser disfarçado ou diluído.



E por falar em sujeira, eu mesmo já tentei lavar a corrupção do Brasil, e obviamente deu muito errado.


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