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ENSAIO 06: SABÃO EM PÓ

Atualizado: 29 de jul.



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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19/04/2022


SABÃO EM PÓ


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Eu já tentei lavar a corrupção do Brasil, óbvio que deu errado.


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No dia 18 de maio de 2017 eu acordei decidido: lavar a corrupção deste país e mudar os rumos da história do Brasil, ou pelo menos fazer umas bolhas coloridas.


Coloquei dois saquinhos com sabão em pó nos bolsos da minha jaqueta e fui em direção à minha missão, fazer espuma no lago artificial do Hotel Majestic em Florianópolis durante a chegada e visita do então apenas deputado federal, pai de quatro varões e uma fraquejada e já naquela época excelentíssimo boca de esgoto, Jair Messias Bolsonaro.


Meu sonho sempre foi jogar sabão naquela água e ver espuma no quarteirão todo, sair nos jornais e ficar famoso mesmo anonimamente e jurar para as pessoas próximas ter sido eu o, como na manchete: O Vândalo da Lavanda, apelido Lavândalo, o bandido mais cheiroso da história do Brasil.


E com um charme a mais, poderia dizer para todo mundo que tentei lavar a corrupção do país como o então deputado prometia, como todo político promete, mas ninguém pega o sabão nas mãos.


Quantos nomes legais esse movimento não poderia ter gerado: A Revolução do Sabão, A Revolta das Bolhas, A Noite dos Tensoativos Iônicos, A Centrifugada de Maio, O Enxágue de 2017, Bubble Lives Matter.


Estacionei meu carro no shopping pois sou liberal na economia e conservador nos costumes e ao chegar o local já estava agitado, mas não havia gente o suficiente para eu me disfarçar na multidão e cumprir meu dever. Não havia multidão, apenas algumas dezenas de moleques playboys engomadinhos de camisas polo e social no lado direito ideológico e moleques playboys de camisetas de Che Guevara e pés sujos no lado esquerdo ideológico.


A presença feminina era gritantemente maior no lado esquerdo, gritantemente gritando inclusive. E elas naturalmente, como era de se esperar, patricinhas de pés sujos também.


Um pouco antes das dezesseis horas me alegrei na esperança de que o tumulto com a chegada do deputado ajudasse a criar um pequeno caos por onde eu inocentemente circularia em meio as pessoas e esvaziaria os meus bolsos nas fontes de água mas havia câmeras demais, vigias de hotel demais, policiais demais, apoiadores e manifestantes de menos e os curiosos de sempre dispersos.


Ironicamente os cidadãos de bem da direita estavam do lado esquerdo e a galerinha do bem da esquerda estavam do lado direito, o espelhamento ideológico e a teoria da ferradura na prática, a isomeria mental escancarada e separada por um corredor de policiais.


Fiquei circulando pelo nosso espectro político fantasmagórico brasileiro esperando o momento de distração geral para (anonimamente e silenciosamente) fazer todos espumarem, de raiva ou não, mas espumarem.


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Enquanto estava distraído tentando pensar numa solução olhei para um policial recém chegado na manifestação e fiquei encarando ele até ele me olhar.


Como sempre faço nessas situações eu encaro, aí desvio os olhos furtivamente até o policial achar que estou tramando algo e olho de novo.


Quando olho de novo deixo escapar um olhar de cobiça e um sorrisinho tímido e malicioso para fazer o mesmo policial pensar que a minha única contravenção era estar atraído por ele.


Dessa vez, ele correspondeu, primeiramente naquela ojeriza leve de culpa interna e logo após sorrindo com um olhar tão furtivo quanto vereador abrindo a planilha de orçamento da prefeitura no primeiro dia do seu primeiro mandato.


Como tem gay na polícia, onde já civil.


Neste momento eu estava do lado dos apoiadores e senti um tapa nos ombros, um amigo meu feliz da vida pois veria o Bolsonaro de perto.


No auge da empolgação com o momento ele falou:


- Eu gosto do Bolsonaro porque ele FALA A REAL.


Vai saber o que é falar a real.


Este papo me deixou um pouco deprimido e fiquei preocupado pensando que se ele cheirasse as próprias mãos sentiria o cheiro de sabão por ter me cumprimentado, então decidi trocar de lado.


Contornei a praça e logo alcancei a oposição.


É incrível como oposição no Brasil é sempre escandalosa, batucadas, palavrões, gritos, rimas.


E muita cara feia.


Já são feios naturalmente com sua pobreza fingida em suas roupas de marca rasgadas, ou melhor, customizadas para se encaixar no estilo universitário consciente candidato à assistência estudantil.


Boné do MST é a SUPREME do look deles.


Neste lado não tive coragem de encarar policial nenhum, gay ou não, ali eles estavam em ponto de bala digamos.


Encontrei outro amigo, assim como eu meio perdido e sem lado ideológico e ficamos rindo da surrealidade da situação.


E eu com sabão no bolso.


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Estava tudo correndo relativamente bem na festa da democracia: pessoas se xingando, fazendo sinal feio, gritando aquelas frases prontas e decoradas de quem se diz não-doutrinado e ameaçando te-dou-uma-bofetada-daqui e dá-que-te-dou-outra de lá e aquela coisa toda de sempre enquanto eu esperava uma brecha e fazer a minha parte pelo país até a hora em que o tão amado por uns, tão odiado por outros (e aguardado por todos) chegou, a barulheira aumentou consideravelmente misturando aplausos e vaias, embora ninguém ali fora soubesse de fato quem estava aplaudindo ou vaiando.


O deputado não saiu para recepcionar a galera, entrou pela garagem e ao ir em direção ao salão de eventos do hotel acenou na direção de onde nós estávamos.


Foi o suficiente para o caos começar.


Naturalmente quem era da oposição nesse momento já estava com as veias da testa saltadas e rostos vermelhos de tanto gritar rimas e palavrões e palavras de ordem sem respirar.


Ninguém ali parecia se importar mais com a presença do futuro presidente, a ordem agora era xingar quem estivesse do outro lado do paredão de policiais, cada um escolhendo uma pessoa e apontando alguns dedos e fazendo sinal feio com os outros quanto então uma manifestante da esquerda do lado direito resolve cuspir e dar um tapa num infeliz da direita do lado esquerdo, um policial tomou meia cuspida e meio tapa junto, que olhou para o policial do lado e então tirou uma bomba de efeito moral do colete e (acredite) gentilmente soltou ela no meio da galera da esquerda do lado direito.


Era tudo o que (não) precisávamos.


Tão gentilmente a ponto de ninguém se mexer esperando ela chegar no chão, mas bomba de efeito moral geralmente não espera chegar no chão para impor a sua moral.


O tempo parece realmente passar mais lento quando você vê uma bomba no ar antes dela explodir e aí ela explode e do nada tudo parece atingir a velocidade da luz.


De fato só existem três momentos em que a vida passa diante dos seus olhos:


- Quando você cai em um precipício.


- Quando o leite ferve.


- Quando explode uma bomba de efeito moral.


De um precipício não tem pra onde correr, do leite derramado não adianta chorar, mas quando a puliça joga bomba ou você corre ou chora ou ambos e, no meu caso, ambos.


E quem corre assume estar do lado errado.


Quem não deve não teme, diz a sociedade.

Quem toma bomba corre e treme, disse meu coração.


Nesta hora como eu estava justamente no lado da esquerda do lado direito e só me restou sair da confortável posição hétero-padrão-mãos-nos-bolsos-pés-na-parede-de-camarote-vendo-o-circo-pegar-fogo e começar a correr e chorar.


E eu nem tinha nada a ver com o rolo, eu só queria... você já sabe.


Na moral, uma bomba de efeito moral tem efeito desmoralizante demais, não mata, não machuca, você esquece o seu nome, perde o senso de direção e do ridículo e a única coisa que vai pelos ares é a vergonha de correr como um idiota.


Não deu tempo nem de dar uma de Cazuza e cantar como a burguesia fede (yeah) ou titanicamente indicar a polícia para quem precisa de polícia, igual o Geraldo Vandré decidi que esperar não é saber e resolvi caetanear de vez, ativei o modo contra o vento sem lenço e sem documento e corri.


Corri e olhei para trás, olhei para frente, corri mais, chorei, dei risada, corri mais, olhei para trás, olhei para frente e corri mais um pouco e só via aquela mistura de desesperança de um futuro melhor e espingardas calibre doze e claro, balas de borracha passando diante dos meus olhos.


Desviei de todas.


Tudo isso em uma distância de uns trinta metros entre os fundos do hotel e o posto de gasolina do lado.


Eu confesso, não vi nenhuma bala de borracha e se desviei de alguma foi por acaso, apenas escutei algumas vezes aquele barulho TUFF inconfundível, que faz você correr nadando no ar igual uma mistura de clone do Neo do filme Matrix com os braços de uma Maricota de Boi De Mamão ou um boneco inflável de borracharia com pernas e na velocidade seis.


É o tipo de momento na vida que faz você se perguntar se Rage Against the Machine realmente é uma boa influência para os jovens.


Me senti em plena paulista meo.


Pensei em espalhar o sabão no ar e simular uma bomba de fumaça cheirosa mas isto me faria parecer definitivamente um manifestante pedindo flagrante, e vai saber o que diz o código penal sobre levar sabão para manifestação, resolvi não arriscar.


Entrei no posto de gasolina e já assumi novamente a postura de tolo com os pés na parede e a minha ensaiadíssima expressão e olhar de quem sempre acabara de chegar e já iria embora e tudo de repente se normalizou.


Pelo menos pra mim, desisti da minha bomba de efeito floral e fui passear no shops, entrei no supermercado, comprei uns trezentos mil reais de Bala Gomets e fui para casa tomar banho e tirar o cheiro de ideologia dos outros do corpo e assistir Better Call Saul embaixo das cobertas.



Estava frio e eu estava de folga (chamei de auto-convocação em nome do dever cívico) mas se eu tivesse conseguido ensaboar o dia, se tivesse sido preso por isso e se o Jimmy McGill trouxesse o meu habeas corpus, eu estaria triplamente realizado, fim.



Mas não há nenhuma garantia de que lavando a corrupção do Brasil me agradeceriam ou algo iria mudar de fato.


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Quase um ano antes, no dia 17 de Abril de 2016, estávamos em São Paulo para ver o show da banda The Dillinger Escape Plan no mesmo dia e praticamente no mesmo horário em que o país parava para ver o teatro do impeachment da presidente Dona Dilma Rousseff e nós então chamamos este dia de The Dilma Escape Plan, ela não escapou, mas nós nos divertimos bastante.


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Nota de arrasta-pé: A manifestante da esquerda do lado direito que cuspiu e agrediu meio manifestante e meio policial é filha de um dos diretores da região do maior plano de saúde do país e ela foi presa.


Chegando na delegacia o pai dela já estava esperando ela para levar para casa, não entrou nem para dar depoimento ou assinar termo circunstanciado pois numa democracia como a nossa amaciante é para quem pode, e sabão nos olhos dos outros é refresco.


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Cápsula do tempo.


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Por falar em Better Call Saul, hoje dia 19 de Abril de 2022 (quando atualizei e postei este ensaio) saíram os dois primeiros episódios da sexta e última temporada da série.


As pessoas me encheram o saco durante cinco anos seguidos pra assistir Breaking Bad mas na época em que a série passava eu estava viciado em The Wire (possivelmente a melhor série policial de todos os tempos) e Mad Men (a melhor série de todos os tempos, ponto final) e ainda tem o fator ser do contra:


Se alguém me fala que eu tenho que com toda certeza eu não terei que pois você não manda em mim.


Não ajudou muito também quando saiu no Brasil a a versão dublada com o nome de "Breaking Bad: A Química do Mal" e só me pergunto qual seria a tradução se o nome original fosse "Breaking Badass".


Mas em 2016 eu assinei Netflix e entrei neste mundo de ficar uma hora procurando o que assistir (e no fim assistir apenas meia hora de alguma coisa e terminar de ver o resto no outro dia) e por acaso Better Call Saul me chamou a atenção: advogado corrupto feioso com futuro incerto, parece bom.


Mas aí descobri que deveria assistir Breaking Bad antes para entender Better Call Saul então decidi enfim conferir as tais desventuras do Walter White que tanto falavam nos anos anteriores.


Bom, Breaking Bad é sensacional, possivelmente a segunda melhor série policial de todos os tempos e ainda drama, comédia, suspense, e com um adendo interessante: quando a série começa você já sabe o destino do personagem principal.


Quando você descobre o que se passa e onde ele se envolve e quando ele aparece de cuecas no final do primeiro episódio você apenas já sabe, o que não deixa de ser sensacional, uma espécie de Memórias Póstumas de Brás Cubas sem narrador que, vejam só, dei uma pesquisada e na época quando o livro de Machado de Assis foi escrito como uma série publicada semanalmente em jornal e só depois lançado impresso.


Assim como Fargo e todas as obras dos Irmãos Cohen, Breaking Bad também é sobre decisões imbecis e suas consequências. Dois personagens antagônicos, um dominou as circunstâncias até destruir tudo ao seu redor e outro dominado por elas até quase se destruir junto.


Breaking Bad é muito triste.


Walter White é o Sísifo que decide soltar a pedra do alto da montanha. Aliás ele mesmo se transforma na própria pedra e se torna um peso para todos e Jesse é o infeliz que pega a pedra rolando no final.


E a música tema da abertura não deixa dúvidas, Breaking Bad é um faroeste.


Breaking Bad também é um caso onde quase todos os personagens secundários mereciam uma série por si só, seja pelo personagem ou ator e geralmente por ambos e todas as séries poderiam se chamar Better alguma coisa: Better Call Saul, Better Respect Mike, Better Watch Lydia, Better Try Marie e assim por diante.


Com nomes diferentes talvez apenas Maybe Call Hank e Never Call Gus.


Better Call Saul é menos violenta e mais lenta no ritmo mas você novamente já sabe como vai acabar, pelo menos para o personagem principal. Até onde eu sei é o único caso de série secundária narrando os fatos antes da série original mas abrindo o primeiro episódio mostrando o depois, e o interesse é saber como e quando tudo se desenrolou.


Não sei se saiu versão dublada mas eu chamaria de "Better Call Saul: Melhor nem Chamar".


E mais interessante ainda, é a única obra que eu conheço mostrando o futuro em preto e branco e não o passado, como se a nostalgia fosse invertida ou até mesmo o tempo já estivesse assim escrito desde o início, afinal Jimmy McGill/Saul Goodman é um personagem com passado e presente incertos e vergonhosos o suficiente para o futuro não ser importante de fato.


Sobrevivendo ou não, ele já está morto por dentro.


E ainda tem uma grande pegadinha, em Breaking Bad você sabe o final do personagem principal desde o primeiro episódio, em Better Call Saul você sabe o destino do personagem principal já na abertura do primeiro episódio, então o assunto passa a ser as pessoas arrastadas juntas.


E aí entra a Kim Wexler, e todo mundo quer saber o que acontecerá com ela.


A parte triste, muito triste, é que claramente não será um final feliz.



Lá pelo décimo quinto ensaio por aqui já saberemos, se não quiser spoiler esteja avisado desde agora.


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Cápsula do tempo em tempo real: Assisti os dois primeiros episódios agora, abertura simplesmente sensacional mostrando um futuro colorido mas não tão feliz e logo a sequência de malandragens, desencontros, humor e violência sempre na medida certa.


Better Call Saul é melhor que Breaking Bad, mas você não precisa Levar Para o Lado Pessoal.


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