Foto: Ayrton Cruz
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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04/05/2022
FADA DO DENTE
Quanto custa a vida de uma pessoa?
No Brasil: dois reais e cinquenta centavos.
A sua melhor amiga vai te explicar.
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De tempos em tempos, ou praticamente o tempo todo, é comum ver nas redes sociais postagens de pessoas supostamente preocupadas com o bem-estar dos mais pobres seguidas pela muito mais que suposta solução: taxar ricos e grandes empresas.
Mas quando isto acontece os tais ricos e as tais grandes empresas continuam misteriosamente ricos e grandes ou se tornam até mesmo mais ricos e maiores por causa do fenômeno econômico dos custos diluídos e benefícios concentrados.
Ser rico é basicamente a capacidade de concentrar dinheiro e uma grande empresa assim o é pela capacidade não só de gerar lucro e concentrar riqueza mas também diminuir os custos ou, mais precisamente diluir, geralmente em direção ao consumidor final.
Quando um governo movido pela pressão popular ou por interesse do próprio bolso resolve cobrar mais imposto de uma grande empresa ou grande concentrador de riqueza ,o alvo dessa cobrança faz o que sabe fazer de melhor: dividir esta taxa com você, sem você perceber.
Qualquer custo a mais em qualquer produto, aquele chocolate de três reais e cinquenta centavos agora custa três e setenta e cinco ou aquela geladeira nova de mil e quinhentos passa a custar mil e seiscentos e cinquenta pois você gosta de chocolate e você precisa de uma geladeira nova, vinte e cinco centavos ou cento e cinquenta reais não vai doer tanto no bolso pois paciência, você gosta de chocolate e você precisa de uma geladeira nova.
Parabéns, você e milhares ou milhões de outras pessoas acabaram de pagar todos juntos os novos custos diluídos dos novos impostos do milionário ou da grande empresa (que, segundo as redes sociais, te exploravam) e assim os milionários e a grandes empresas acordam no outro dia tão ricos ou mais e tão grandes ou mais quanto foram dormir na noite anterior, e você com cento e cinquenta reais e vinte e cinco centavos a menos no bolso.
Você pediu, o estado cobrou, os ricos e as grandes empresas diluíram os custos, você pagou.
Nos Estados Unidos existe um termo para isso, Crony Capitalism (ou capitalismo entre amigos e no Brasil, conluio), quando governos e empresas atuam apenas em benefício próprio em detrimento e empobrecimento da população em geral, o bom e velho "capitalismo para nós, socialismo para eles".
E quanto mais pobre for a pessoa mais diluído será o custo, mais pobre ela ficará e menos perceberá e quanto mais pobre fica mais injustiçada se sente e mais o sentimento de vingança alimenta, mais pede para o governo punir quem tem mais dinheiro e mais quem tem mais dinheiro devolve para o pobre o custo da punição e de mais em mais toda soma vira subtração e de tanto querer mais para si e menos para os outros, menos se tem e menos terá.
Ser pobre é basicamente viver na sombra das privações, algo próximo de um nudismo involuntário, você tem pouca roupa e quanto menos roupa tem mais roupa tem de lavar, quanto mais lava a roupa mais rápido a roupa estraga e com menos roupa se fica e mais roupa tem de comprar, por mais alguns centavos mais cara nas lojas do velho da Havan e mais pobre se fica e analisando esta cadeira hereditária não há como se livrar desta situação precária e o rico cada vez fica mais fico e o pobre cada vez fica mais pobre e o motivo todo mundo já conhece é que o de cima sobe e o debaixo desce e quem não conhecia acabou de conhecer e você não precisa de vírgulas porque você já está cantarolando e assim eu já consegui estragar o seu dia.
Recupere o fôlego que tem mais, segue.
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Por falar em Canudos e sabão em pó o brasileiro não parece gostar de uma boa ensaboada, ou uma faxina geral, ou uma limpeza pesada, geralmente uma passada de pano ou uma mãozinha de tinta por cima já está bom, o que me traz novamente um monte de histórias quase aleatórias sobre o mesmo tema ou aleatórias sobre quase o mesmo tema, em uma sequência tanto cronológica quanto esquizofrênica.
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Pedro Martinelli é uma das figuras mais interessantes da história da fotografia nacional e com toda certeza teve um dos melhores empregos do mundo: Pedro fotografou para a Revista Playboy e a Floresta Amazônica quando ambas, mulheres e floresta, ainda tinham vegetação densa.
Até onde eu lembro das suas entrevistas e textos Pedro falava pouco sobre a revista mas muito sobre a Amazônia, que conheceu aos 20 anos de idade em plena década de setenta, em plena ditadura militar, em plena vida selvagem e por lá ficou, entre indas e vindas*, por quase três décadas.
Em uma das suas entrevistas, creio eu inclusive para uma edição da Playboy, Pedro cravou uma metáfora premonitoriamente atemporal sobre o Brasil quando a pergunta foi sobre política nacional.
Na sua resposta Pedro lembrou de um mercado público em uma das cidades ribeirinhas que se formaram e se desenvolveram através das estradas construídas na região e que por mais de 20 anos viu sempre a mesma poça de esgoto na entrada, com água suja do próprio mercado, pequena em épocas de estiagem e alagando toda a entrada em épocas das chuvas de verão mas sempre lá, nunca removida, nunca tapada, nunca escoada.
Nos dias de estiagem você pulava, nos dias de chuva você tinha de pisar em uma ponte improvisada de tábuas e cavaletes tombados sobre o esgoto para entrar no mercado.
Mas em todos estes 20 anos a cada dois ou quatro anos algo sempre mudava, pintavam a fachada do mercado de uma nova cor, apenas a fachada, e colavam novos cartazes dos políticos candidatos à próxima eleição.
E nos próximos dois ou quatro anos, uma nova fachada e um novo político ou até mesmo o vencedor da eleição anterior tentando se reeleger.
E sempre a mesma promessa: reformar o mercado público.
E nestes exatos 20 anos, a exatos cada dois ou quatro anos, o melhor cabo eleitoral de todos estava sempre lá nas épocas de estiagem vazia e nas épocas de chuvas cheia: a poça de esgoto, nunca removida, nunca tapada, nunca escoada. E a cada dois ou quatro anos uma nova ponte improvisada feita de cavaletes deixados pelos candidatos.
Pedro resumiu o Brasil desta forma, uma promessa sempre refeita de tempos em tempos de uma reforma que nunca acontece.
Ou, se você preferir uma leitura mais literal da interpretação dele, uma poça de esgoto ora vazia, ora cheia.
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Quando eu era moleque lá pela segunda metade da década de 90 eu separava todo o meu plástico para reciclagem, lavava cada potinho de iogurte e colocava dentro de uma sacola também plástica e levava até um centro de triagem no centro de Florianópolis, onde se agrupavam mendigos, artistas plásticos (meu deus mais plástico) e alguns pequenos empresários que usavam materiais usados para fazer coisas com materiais usados.
O que sobrava era então enviado para um centro de reciclagem, o qual nunca ninguém havia visto ou sabia onde ficava. Como o caminhão de coleta seletiva era mais novo e mais bonito (menos feio) que um caminhão de lixo comum, ele sempre parecia estar indo para um destino melhor. Até buzinava.
Alguns anos depois foi feita uma denúncia e matéria televisiva onde um repórter mostrava que o lixo reciclável restante era jogado no aterro sanitário junto com o lixo comum e, graças ao escândalo político, foi criado um centro de reciclagem na região continental da cidade.
Poucos anos depois, lá pelos anos 2000 li em alguma matéria em alguma revista de que se 50% de todo plástico usado no mundo fosse reciclado o consumo de água necessário no processo causaria um dano ambiental maior que simplesmente jogar o plástico fora.
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Em 2009 um funcionário do Hospital Universitário em Florianópolis ficou cismado ao ver o nome e o horário do médico disponível na unidade de ortopedia, ver a confirmação da sua presença no registro, e nada da sua presença física.
E uma fila de crianças, adultos e idosos esperando horas, dias e meses por uma leitura de radiografia.
Pés inchados, pés calcificados, pés tortos, mãos deformadas, colunas inconformadas.
Em poucas semanas de investigação descobriu quase trinta médicos do hospital praticando o hábito de chegar, bater o ponto e sumir para as suas respectivas clínicas particulares.
Descobriu também que alguns médicos cadastraram os dedos de funcionários terceirizados na leitura biométrica e sequer apareciam, outros fizeram dedos de silicone com suas impressões digitais e funcionários terceirizados realizavam a função extra de bater o ponto eletrônico duas ou quatro vezes por dia mediante um troquinho a mais no fim do mês, em dinheiro vivo.
Dois anos depois entregou todas as provas para a polícia federal e o ministério público e em menos de um mês um funcionário do ministério público informou que, dadas as condições gerais e burocráticas tanto de investigação e exoneração e contratação de novos médicos, seria menos custoso deixar simplesmente tudo como está, todos os médicos empregados e levando cada um apenas um puxão de orelha administrativo.
Segundo ele, um médico experiente mesmo ausente ainda assim era melhor (e mais barato) que um médico novo e inexperiente.
Não contente, o funcionário do hospital deixou sem querer querendo vazar uma pendrive comprada do próprio bolso com todas as provas e denúncias para uma filial regional da Rede Globo e a notícia se espalhou, ganhou matéria especial do programa dominical da capital e, uma ou duas semanas depois, matéria do Fantástico na Rede Globo em rede nacional.
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Em 2010 na cidade de Itu ocorreu o Festival SWU, ou Starts With You (começa com você), e além dos shows nacionais e internacionais tinha como foco a realização de um evento sustentável, com propostas como economia de água, consumo racional de produtos e redução do lixo gerado em três dias de evento.
Uma das ideias mais interessantes, na teoria, foi cada participante ganhar na entrada um tubo plástico com tampa de rosca e nome de porta-bituca, a intenção era você sujar menos o chão e guardar as bitucas de cigarro usadas para você mesmo jogar no lixo da sua casa quando a noite acabasse.
E se você não fumava? Ganhava também, para dar bom exemplo.
O resultado final de tanta ideia bem intencionada apareceu logo no primeiro dia: falta de água, falta de comida e lixo espalhado por todos os lados e os porta-bitucas, agora cheios de pedra e urina e cuspe e sabe Deus o que mais viraram uma espécie de bombas sujas voando por todos os lados nas plateias e, quando um dos organizadores foi no microfone pedir paz, a chuva de porta-bitucas foi em direção ao palco, acompanhada do coro:
- Comece com você! Comece com você! Comece com você!
E já no fim da primeira noite aqueles que de fato usaram como porta-bitucas começaram a jogar os tubos perto da saída do evento (ninguém disse que você era obrigado a levar para casa), onde rapidamente se formou uma montanha enorme de bitucas de cigarro dentro de tubos plásticos com tampas de rosca, a qual não posso saber o destino mas apenas imaginar, uma outra montanha enorme de lixo comum para ser aterrado em algum lugar longe da nossa vista.
Não só não podemos duvidar do poder de destruição das pessoas com boa intenção, mas nunca podemos subestimar a capacidade delas de aumentar o problema o qual tentaram solucionar.
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Em 2011 descobri que o destino da coleta pública seletiva de lixo reciclável e o centro de reciclagem eram apenas uma fachada onde trabalhavam apenas outros separadores de lixo e o plástico restante era descartado cerca de 30 quilômetros mais afastado do lixão comum municipal para ser aterrado da mesma forma, apenas mais longe da vista de quem acreditava no processo de reciclagem e reaproveitamento do plástico e de que para fazer a sua parte bastaria apenas pendurar um saquinho (plástico) de lixo mais bonitinho nos dias da coleta do caminhão decorado com desenhos de flores e crianças brincando.
A coleta seletiva não apenas não servia de muita coisa como ainda gastava mais diesel para ser transportada de caminhão e jogada fora mais longe dos seus olhos.
Planeta estranho, a reciclagem não existe e se existisse não resolveria o problema.
Podemos ignorar a realidade até não poder mais ignorar as consequências da realidade mas tudo bem, por enquanto o que os olhos não veem a poluição não sente.
Até que um dia o gigante acordou.
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Em 2013 a passagem de ônibus urbano em São Paulo amanheceu custando vinte centavos mais cara.
Foi um auê, um fuzuê, um bafafá.
Todo mundo saiu nas ruas protestar e por mistérios nunca mais esclarecidos os protestos se espalharam pelo país todo por causa de 20 centavos alegando não ser só pelos 20 centavos e de repetente passou a ser sobre tudo.
Sabe como é brasileiro, quando quer mudar algo vota, quando não muda grita, quando grita vira rolê geral e o que era contra o aumento de 20 centavos se tornou o clássico contra tudo isso que aí está.
Contra a corrupção, contra o privilégio político, contra isto e aquilo, contra aquele ali e aquele lá, what the fuck is this, what the fuck is that.
Em Florianópolis jovens desocupa, digo, preocupados com o futuro do país, ocuparam ambas as pontes de entrada e saída da ilha, um recado claro de que uma democracia se parece muito com um forró, quem tá fora quer entrar mas quem tá dentro não sai.
Não à toa o mote geral era de que o gigante (o Brasil) acordou e o cartaz mais chamativo durante estes dias foi: Desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil.
Não lembro de nenhuma mudança significativa a não ser o aumento da passagem do ônibus paulista para R$ 3,50 em 2014, para R$ 3,80 em 2015, R$ 4,00 em 2018 e R$ 4,40 em 2022 além claro, do Rafael Braga preso, então não duvido se este cartaz não tenha sido colado também em algum mercado público em alguma região alagável no Estado do Amazonas, de frente para uma poça de esgoto, ora vazia, ora cheia.
O gigante acordou, protestou, bebeu, gritou, e voltou a dormir.
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Em 2017 o mundo da ecologia e sinalização de virtude encontrou a campanha perfeita: pare de chupar.
Calma, eu explico.
Todo mundo sabe que plástico é um problema, e todo mundo usa plástico mesmo sabendo do problema, logo todo mundo é o problema.
É simples e irritantemente inevitável.
Sabendo disto (e investindo na velha ideia de que cada um pode fazer a sua parte) uma instituição chamada Lonely Whale Foundation (Fundação Baleia Solitária) criou a campanha Stop Sucking (Pare de Chupar) pedindo para você simplesmente parar de chupar ou, sendo mais específico, de usar canudo.
No Brasil a mesma campanha foi moda por um verão ou dois e, como você pode imaginar, atores e atrizes que todos gostariam de chupar (ou ser chupados por) te pedindo para você parar de chupar e fazendo cara e olhar de eu sei que você quer me chupar.
Tão Brasil.
Se você procurar no YouTube ainda tem mas antes tire as crianças da sala.
Deu certo, as pessoas reduziram o consumo de canudos e passaram a consumir mais... copos... plásticos.
Mas não importa, o importante era você não usar canudo e fazer a sua parte.
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Em 2019, 10 anos depois da primeira descoberta do primeiro ponto eletrônico falso descoberto no Hospital Universitário, todos os médicos foram absolvidos, continuam empregados e, supostamente, trabalhando.
Das provas coletadas chegaram no processo somente as comprovações de fichas ponto e anexos mostrando como a estrutura do hospital não comportaria todos os médicos cumprindo toda a carga horária prevista para cada um e que os médicos trabalhavam por metas.
Se estas metas eram o tamanho das filas de espera o funcionário que fez a denúncia nunca descobriu.
Mas a notícia passou desapercebida, ainda no mesmo ano surgiu na cidade um novo escândalo: a Ponte Hercílio Luz, símbolo inconfundível de Florianópolis.
Construída em quatro anos entre 1922 e 1926, interditada em 1982 e reaberta em 1988 apenas para pedestres, bicicletas, motocicletas e carroças até 1991, quando foi novamente interditada e em 1992 tombada como patrimônio histórico, passou a curtir um longo período de mofo e maresia disfarçados de restauração até começar a ser novamente reformada a partir de 2010 e, no primeiro semestre de 2019, saiu a notícia de uma denúncia de irregularidades somando possivelmente um bilhão de reais em mais de 20 anos em supostas restaurações e reformas contínuas.
Desta vez nenhum gigante acordou e ninguém protestou (talvez por medo da ponte cair e levar todo mundo junto) mas temendo o custo eleitoral e político os governantes do estado e da cidade apressaram as obras e milagrosamente terminaram as reformas em cerca de seis meses e reinaugurando no dia 30 de dezembro de 2019, dia em que mais de 200 mil pessoas passaram por lá, pano de fundo da selfie da moda até o início da pandemia com suas selfies mascaradas e a competição da selfie para ver quem se vacinava primeiro.
Podemos concluir certeira e apressadamente que o brasileiro médio não só tolera a corrupção mas também celebra se ela for fotogênica e servir de cartão postal.
Além dos roubos e desvios e desperdícios saídos do seu bolso, as sucatas da(s) reforma(s) da Ponte Hercílio Luz renderam três milhões de reais para a prefeitura com a sua venda, e melhor nem perguntar onde este dinheiro foi parar, na melhor das hipóteses virou tinta branca de pintar meio-fio.
Por falar em canudos (com c minúsculo agora) você deveria dar mais valor para a sua melhor amiga mesmo que você talvez não tenha conhecido ela ainda e quando conhecer, provavelmente não vai se lembrar.
Mas ela não vai ficar chateada, uma espécie de fada do dente acostumada a só aparecer quando você está inconsciente.
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Veja da seguinte forma, eu não desejo o seu mal, é apenas um fato da vida: um dia você vai ficar doente, talvez você sofra um acidente, talvez você precise fazer uma cirurgia e quando isto eventualmente acontecer, essa coisinha tecnologicamente simples e maravilhosa chamada Cânula de Guedel vai ser literalmente a sua melhor amiga.
E aí eu torço para o seu político de estimação não estar construindo nenhum estádio de copa ou planejando outra olimpíadas ou tirando férias às custas do seu dinheiro e que assim você sobreviva.
Porque uma das primeiras coisas a faltar quando o governo decide gastar com pão e circo é a Cânula de Guedel, e como não dá para garantir ou prever quando isso vai acontecer, eu desejo apenas que você tenha sorte e saúde.
Mas independente de sorte, saúdes e governos a Cânula de Guedel é tão essencial quanto simples, uma espécie de canudo com aparência de chupeta e formato côncavo cujas funções são tão extensas e muitas vezes parte de um sistema tão complexo que o mais fácil é te contar o seu papel mais simples e fácil de visualizar: permitir a passagem.
Ar, líquidos, alimentos pastosos, remédios, sondas, câmeras, é esta cânula (a sua melhor amiga) a responsável por não deixar você cerrar os dentes quando você estiver em crise ou enrolar a língua se estiver em estado de choque mas também, porque nem tudo são flores, é a responsável por te deixar com ar de bobo boca e boca semiaberta enquanto você passa os seus dias desacordado em uma UTI.
Possui em média cinco a seis tamanhos disponíveis para cada modelo e alguns hospitais inclusive diferenciam a cor da parte externa da cânula para identificar qual o tipo de tratamento a pessoa está recebendo naquele momento através dela.
Também chamada de Cânula Orofaríngea ou Tubo Endotraqueal e considerada uma peça semi-descartável, a Cânula de Guedel é trocada conforme decisão médica ou do corpo de enfermeiros responsável pelo seu bem-estar e depende do motivo pelo qual você foi parar no hospital e também das suas pré-condições de saúde: se você se acidentou e tem boa dentição e higiene bucal e nunca teve problemas respiratórios ela chega a ficar 15 dias com você, até ser trocada por outra igual.
Mas se você está infectado ou contaminado ou tiver idade avançada e for muito suscetível a ter doenças respiratórias ela pode ser trocada diariamente por outra amiga igual a anterior sem você perceber, e em períodos de inverno ou epidemias respiratórias a sua disponibilidade é considerada artigo de primeira necessidade, e artigos de primeira necessidade em um hospital é sinônimo de vidas salvas.
É o papel da fada do dente, até a chegada do governo.
Além de simples a Cânula de Guedel é relativamente barata, cerca de cinco reais a unidade se você comprar em lotes através de licitação, ou dois reais e cinquenta centavos se você atravessar a rua e comprar à vista na primeira farmácia no seu caminho.
O fato de uma unidade em um lote de centenas ou milhares de unidades custar o dobro de apenas uma comprada no varejo é um desses mistérios nada complexos escancarando o papel dos governos na vida dos cidadãos, além da também nada misteriosa encomenda de mil unidades e entrega de apenas quinhentas de um produto de uso considerado sempre emergencial e que, quando começa a faltar, ou os médicos e enfermeiros compram do bolso, ou ambos começam a lavar a sua melhor amiga antes de colocar na sua boca de volta.
E esta situação, dependendo da sua condição de saúde, da investigação e da interpretação do juiz, pode te levar à morte e o médico responsável ser julgado por negligência ou até mesmo homicídio culposo.
Num hospital você não mede a corrupção em valores de dinheiro roubado mas em número de vidas perdidas, ainda mais se for (leia com aspas) público e gratuito, e poucas linhas acima já percebemos que isto significa pagar o dobro.
Fazendo uma conta mental tão simplória quanto a percepção das pessoas sobre corrupção, com um bilhão de reais de uma ponte em eterna reforma você compra quatrocentas mil Cânulas de Guedel, praticamente uma para cada morador da cidade de Florianópolis.
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Se uma fada do dente aparecesse para mim hoje de noite eu pediria apenas: mande eles pararem de falar do SUS, bem ou mal.
Quem fala mal do SUS não conhece, e quem fala bem não precisa.
Quem ataca não sabe como a saúde pública funciona e quem defende não sabe quem mantém ela funcionando.
É desonestidade intelectual falar automaticamente mal de um sistema sem conhecer como funciona e sem nunca ter visto na prática. E hipocrisia defender cegamente um sistema do qual você nunca dependeu e chamar ele de gratuito só porque é público (são coisas bem diferentes) e igualar iniciativa privada com privatização (são coisas mais diferentes ainda).
Uns acham possível resolver a saúde pública cobrando por cada seringa usada (não resolve) e outros acham que as mesmas seringas foram produzidas por voluntários Oompa-Loompas trabalhando na Fantástica Fábrica das Coisas que o Governo Dá de Graça nos fundos do palácio do planalto (não foram).
Drive thru de vacina não é sinônimo e não representa as reais condições do sistema público de saúde no Brasil, apenas mostra o quanto algumas empresas e muitos políticos lucram com isso, e se no drive thru normal não oferecem mais canudinho o dia que você realmente precisar de um hospital público e a cânula estiver em falta, pedir para você parar de respirar não vai ser uma campanha popular.
Todo mundo em tese sabe o que é uma lei, mas poucas pessoas conhecem o conceito de espírito da lei, algo simples de descrever: Espírito da lei, diferente da lei escrita, é o que estava no coração (nas intenções do legislador) quando ele escreveu, as suas motivações, incluindo a pressão social e o contexto histórico onde e quando ela foi redigida.
Toda boa escola de direito e bons advogados e juízes sabem que a leitura de uma lei deve ser feita levando em conta o espírito da lei, pelo simples e puro motivo de que a sociedade, ao contrário da letra estática escrita em uma folha de papel, é dinâmica.
No Brasil eu identifico dois padrões de espírito da lei:
- O romântico, quando legisladores geralmente de primeira viagem e empolgados com a aceitação e validação popular escrevem um texto relativamente bem intencionado mas irreal e impraticável ,e o maior exemplo é a constituição de 1988 onde o SUS foi inserido.
Sabe quando você vai num churrasco, todo mundo bebe e no final todo mundo vomita e todos saem de lá combinando montar uma banda e depois dá tudo errado? Pois a tal festa da democracia pós ditadura militar foi assim.
- O corrupto (o mais comum e espelho da nossa classe política e por sua vez espelho do povo), quando legisladores escrevem em benefício próprio, seja para fugir de punições de leis anteriores ou beneficiar negócios de familiares e toda a sorte de roubalheira, nestes casos torna mais fácil ainda entender o espírito da lei porque, bom, basta ligar a TV ou acessar qualquer portal de notícias de internet todos os dias e escolher uma.
O SUS é vítima constante destes dois espíritos, na sua origem muitos dos que escreveram fantasiaram o Brasil uma mistura de Suécia com Leblon e todo mundo cuida da saúde e toma sol diariamente.
E nos dias atuais muitos dos que executam promovem ano após ano uma sangria constante dos recursos destinados à saúde pública no país, seja por má gestão, improbidade ou pura e simplesmente corrupção.
É só lembrar das notícias da pandemia de 2020, máfia de respirador pra cá, contrato falso de lote de máscaras pra lá, compra e des-compra disto e daquilo e assim por diante.
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O que dizer de um povo e como mudar um país onde honestidade se mede com régua, poças de esgoto viram cartões postais, pontes turísticas viram ralos de dinheiro e licitações custam o dobro da compra no varejo?
Eu diria o seguinte: para saber se o país realmente vai mudar neste ou no próximo ano (e no próximo e no próximo depois do próximo) não precisa ir muito longe e não precisa falar sobre corrupção, nem canudos ou Cânulas de Guedel, nem eleições ou protestos, 20 centavos ou bilhões, nada.
Para entender o nosso Brasil você também não precisa saber sobre Guerra de Canudos ou a vinda da família real portuguesa.
Basta fazer o seguinte exercício, uma única vez na sua vida: Vá dormir cedo no dia 31 de dezembro e acorde às seis da manhã no dia 01 de janeiro, vá para qualquer praia de qualquer cidade litorânea e você verá todo aquele lixo em plena areia e boiando na água, aquela cena é o seu país.
Cocô, garrafa de vidro de champanhe, rolha de champanhe, rolha plástica de champanhe vagabundo, garrafa de plástico de champanhe, garrafa de vidro de whisky, garrafa plástica de energético, latinha de cerveja, copo plástico descartável, caixa de isopor quebrada, centenas de canudos, vômito, mijo, chinelo arrebentado, calcinha arrebentada, flor de plástico para Iemanjá, camisinha, bituca de cigarro, a visão da manhã do primeiro do dia do ano em uma praia brasileira define, todos os anos, os outros 364 dias que virão pela frente, independente de quem seja eleito ou ganhe o Big Brother Brasil.
364 dias sem usar canudo, 1 dia para compensar pois ninguém é de ferro.
O Brasil é uma ponte sendo reformada por décadas ao lado de uma poça de esgoto com décadas de idade na frente de um mercado público em uma manhã no primeiro dia do ano em uma praia poluída.
Se interessar apenas pela parte visível da problema é uma forma de demonstrar não se importar com a raiz complexa onde as verdadeiras mudanças precisam ser feitas dentro de cada um e por isto mesmo este é o grande trunfo nas mãos do corrupto.
Corruptos e hipócritas andam em bando e ambos são validados pelo ego das pessoas, e é fácil de perceber quanto você lembra de outro exercício:
Quando você diz o que todos querem ouvir, você é amado, quando você diz o que todos querem falar você é odiado por todos, pelos que se ressentem da sua coragem de falar por elas, por você acreditar que poderia falar em nome delas e por quem no fim é alvo das suas palavras.
No país do meu deus alguém faça alguma coisa o melhor é deixar tudo assim como está.
A hipocrisia é diretamente proporcional à indiferença ou até mesmo aceitação da existência da corrupção, desde que ela não apareça ao alcance dos olhos ou sentida diretamente no bolso e por isso pontes superfaturadas em milhões fazem sucesso na mesma medida em que centavos chocam e afinal de contas, se hipocrisia fosse reciclável, seríamos o país mais sustentável do planeta.
Lembre-se, estamos no país onde ONG recebe dinheiro do governo e quando não recebe as pessoas falam: não é ONG porque não recebe dinheiro do governo. Logo podemos concluir que até mesmo uma organização não governamental, a qual em tese tem na sua missão cumprir o papel onde o governo não cumpre, também costuma beijar a mão do governo esperando receber algo em troca.
E o país onde uma ONG precisa dizer não ser uma ONG para ser ONG de verdade.
O Brasil é uma organização não governamental do governo, não há reciclagem ou sabão em pó que dê conta, operação Lava Jato, Lava e Seca, Lava e Passa, Lavagem à Seco, não interessa, não vai mudar nunca.
E mesmo a fantasia batida de que uma bomba atômica ou uma epidemia resolveria não adiantaria de fato, se todo mundo morresse o país seria repovoado pelas pessoas confinadas no Big Brother Brasil, a nossa Arca de Noé, que nos condenaria para sempre a ser Brasil.
Não era só pelos 20 centavos, não era por um canudo e com certeza não seria agora pela Cânula de Guedel, talvez a sua melhor amiga e o primeiro dia do ano em uma praia brasileira sejam a maior prova de que você talvez também seja corrupto.
Nas próximas eleições (e nas próximas e nas próximas depois das próximas) existe sempre o grande o risco de votar em um brasileiro e talvez não exista tanta diferença entre povo e governo, quando uma pessoa defende um político ela não está defendendo ele e nem as suas ações, está apenas irracionalmente defendendo o direito de não admitir ter votado errado, ou que o seu voto não faz diferença nenhuma.
E quando uma pessoa acredita em um artista de Hollywood supostamente defendendo o meio ambiente em um iate no Caribe ou num jatinho particular ela está apenas sonhando estar em seu lugar, e imitar o discurso a faz acreditar na chance de ter o mesmo sucesso, a mesma exposição e mais seguidores no Instagram fingindo ter consciência ecológica, porque no fim do dia você não é cult e nem consciente, você só toma suco em um vidro de palmito.
Afinal se as pessoas não se importam em gastar um bilhão de reais pelo direito de bater uma selfie, não seria mais uma vida perdida por dois reais e cinquenta centavos que faria diferença certo?
Ou vinte e cinco centavos a mais no chocolate, ou cento e cinquenta reais a mais naquela geladeira nova.
O gigante acordou, e ele pediu para começar com você.
Não achou o suficiente? Vou te apresentar o sujo e o mal lavado então.
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*Eu sei que o certo é "idas e vindas" mas "indas e vindas" não fica mais bonito?
E se fosse "indas e vidas" não seria, além de mais bonito ainda, mais poético?
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Cápsulas do tempo.
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Por falar em licitações e benefícios concentrados e custos diluídos no caso do Viagra o benefício é óbvio, favorece o relaxamento da musculatura lisa dos corpos cavernosos do pênis e a dilatação das artérias que levam e facilitam a entrada do sangue no seu melhor amigão e o benefício concentrado da consequentemente ereção.
Quando estava escrevendo este texto pesquisei como funciona o Viagra no Google para poder te dar a informação inútil da frase acima e apareceu mais uma daquelas notícias que você jamais gostaria de ter lido e depois de ler gostaria de desler:
"Forças Armadas aprovam compra de 35 mil comprimidos de Viagra."
Em que pese a quantidade de piadas e desconfianças carregadas de certezas que esse tipo de notícia traz na mente, é fato que o Viagra também é receitado para muitos outros problemas como hipertensão arterial pulmonar, comum em homens idosos.
Também achei uma notícia onde foram comprados outros tantos dois mil comprimidos de Minoxidil e Finasterida, de uso comum no combate à calvície mas também usados contra a hiperplasia da próstata masculina, mas pode causar impotência e ao longo prazo está também relacionada com o surgimento do câncer de próstata.
Então, em tese é compreensível que (de acordo com o papel estatal do exército) sejam comprados estes remédios para atender um grupo majoritariamente masculino onde até o major pode precisar um dia, no pulmão, na próstata ou, digamos, recuperar a alegria de viver.
Mas pelo jeito era só a alegria de viver, de acordo com a declaração do General Hamilton Mourão, então vice-presidente deste nosso Brasil não tão varonil:
"Nós temos farmácias. A farmácia vende medicamentos. E o medicamento é comprado com recursos do fundo. Então, tem o velhinho aqui [aponta para si próprio]. Eu não posso usar o meu Viagra, pô? O que são 35 mil comprimidos de Viagra para 110 mil velhinhos que tem? Não é nada".
Velho safado, deve ser por isso que a gente vive tomando na bunda pois pior que um político só mesmo um político de pau duro.
Mas calma, a internet não perdoa, as licitações menos ainda e logo apareceu outra notícia:
"Forças Armadas reservaram 546 mil reais para comprar Botox entre 2018 e 2020."
Sim, Botox também tem inúmeras outras funções clínicas e médicas além de enfeiar, digo, embelezar esposas de políticos, então vamos deixar passar esta também.
Mas aí veio outra notícia:
"Ministério da Defesa fez licitação para comprar R$ 37 mil em lubrificante íntimo."
Agora a coisa complicou, se o ministério da defesa preferiu comprar lubrificante ao invés de se defender estariam todos esses milicos brincando de trenzinho ao invés de dirigir tanque?
Eu sou pacifista, eu também defendo fazer amor ao invés de guerra e se for para botar que seja sem dor pois o amor não é imortal posto que é chama e que seja infinito enquanto duro, mas pera lá, e a camisinha?
Cadê licitação de camisinha?
Não achei, o Ministério da Defesa não defende nem o próprio canhão.
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Antes de você me perguntar sim eu já tomei Viagra, não que eu precisasse eu juro que eu não precisava era só curiosidade todo homem tem curiosidade juro e o motivo todo mundo já conhece é que o debaixo sobe quando o sangue desce e quando tá fora quer entrar e quando tá dentro ninguém sai.
Resultado, a minha cabeça (a de cima) ficou inchada e com sensação de que eu estava de cabeça para baixo o dia inteiro, e seria melhor se estivesse mesmo, o meu pau ficou duro o dia inteiro sem descanso e para mijar tive de mirar na parede do chuveiro e dar descarga com o chuveirinho.
Viagra é literalmente a personificação do ditado: tome cuidado com o que você deseja, teu desejo pode se realizar e se virar contra você, e de nada vai adiantar o custo diluído do sangue do seu corpo ser o benefício concentrado de estar com o pau duro.
E como se fosse pouco o algoritmo dos mecanismos de busca sem eu querer buscar nada no mesmo dia me mostrou ainda a notícia de que Viagra pode deixar cego, e eu não li a matéria porque fiquei rindo ser justamente em um site chamado Olhar Digital e por pensar quão ruim pode ser a vida de um homem cego com o pau duro o dia inteiro mijando na parede do banheiro, pois em terra de cego quem tem pau duro é rei quem tem um olho é pênis.
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