Foto: Ayrton Cruz
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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25/10/2022
RINHA DE GALO
As metáforas são ruins, mas a realidade é pior.
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Ivan Lessa foi editor e colaborador do jornal O Pasquim nos anos 70, um dos principais veículos de comunicação contra a ditadura militar no período e além de nos lembrar da nossa falta de memória histórico-sócio-política outra frase incrível dele é:
- O brasileiro tem os pés no chão e as duas mãos também.
A interpretação é toda sua.
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A Teoria da Ferradura propõe que nos extremos políticos a esquerda e a direita se aproximam como nas pontas de uma ferradura, incluindo (mais uma metáfora ruim minha) a necessidade de se comunicar por coices e a atração pelo totalitarismo como meio de forçar as suas ideias no próximo e no caminho inverso a total incapacidade de aceitar as ideias opostas.
Na base deste modelo ambas (esquerda e direita) estão sentadas lado a lado, onde os desejos e objetivos confluem e começam a se distanciar a partir do momento quando cada uma acredita ter uma solução melhor ou um caminho mais fácil para chegar no resultado desejado.
Como uma sociedade dividida nunca chega em resultado nenhum ambos se afastam até as pontas da ferradura quando se aproximam não mais pelos objetivos mas sim pelos antagonismo mútuo, desinteressados em propor algo ou no bem comum, mas apenas apontar falhas e defeitos na ideologia oposta e uma única solução: a destruição desta ou daquela.
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Como já citei interiormente galinhas são interessantemente desinteressantes.
Seres simples e se comunicam através de apenas três expressões básicas:
- Cócó (leia-se cocó) que significa nada como dia após o outro
- Cocóóó (leia-se cocóóó) que significa alguém aí tá afim de transar
e por último
- Cócórécócó (leia-se cócórécócó) que significa pura e simplesmente: Meu deus alguém faça alguma coisa
Nada muito diferente da vida dos humanos, levar a vida, transar, se desesperar de tempos em tempos.
Quando eu era criança no interior do Estado do Paraná eu conheci três formas de matar uma galinha, pegar pelo pescoço e degolar por deslocamento, pegar pelo pescoço e descer o facão ou machado ou atirar na cabeça, e depois de morta ela continua se agitando como se não houvesse amanhã ao mesmo tempo em que não atrai um único segundo de empatia ou compaixão das suas colegas de galinheiro, todas ao redor ficam somente naquela postura e aquela cara de vergonha algo constrangidas e silenciosas e desviando o olhar tal quando um amigo derruba um copo cheio de cerveja em um bar lotado.
E durante o escândalo generalizado minutos antes quando você ainda está escolhendo a sua vítima nenhuma delas passa a impressão de gritar por socorro para ajudar, todas de fato parecem gritar apenas:
- Antes ela do que eu! Antes ela do que eu!
Quem diria, galinhas são demasiadamente humanas, coletivamente alienadas e inalienavelmente egoístas.
É muito fácil hipnotizar uma galinha também, basta aproximar a cabeça dela no chão e fazer um risco a partir do bico dela e pronto, ela ficará estática com a cara no solo, assim simples.
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Nos Estados Unidos e em boa parte do ocidente nos últimos anos nasceu uma demanda comercial por alimentação teoricamente mais saudável e junto com esta demanda nascem novas definições artificiais do que é considerado saudável ou não e mais ainda, a partir de quando e do quanto seja lá do que for algo pode ser chamado de saudável.
Um exemplo é a Free Range Chicken, no nosso bom português a galinha caipira criada solta e ao ar livre, de alimentação mais saudável e carne de um animal, teoricamente, não confinado.
Mas qual seria a definição de Galinha Feliz Livre Poderosa Dona de Si?
De acordo com o Departamento de Agricultura do país "Free Range Chicken" significa as galinhas possuírem acesso ao ar livre por pelo menos uma parte do dia com elas optando por sair ou não, dentro de um cercado com cerca de quatro metros quadrados de espaço, na saída do galpão de confinamento.
A liberdade delas é facultativa.
Em outras palavras, ninguém é obrigado a avisar as galinhas da nova concessão de liberdade nem muito menos ensinar e obrigá-las a serem livres e pronto, selo de Free Range Chicken garantido na embalagem do frango confinado e congelado.
Por seu lado as galinhas do meu vizinho vivem num paradoxo, elas são livres dentro de um cercado apenas um pouco maior e como toda galinha também sequer sabem o que é liberdade e assim como as pessoas possuem asas mas sem saber voar.
Sim, é outra metáfora ruim como várias até aqui, mas vivemos em uma democracia e você vai ter de aturar porque numa democracia as pessoas estão acostumadas a ouvir e ler o que não querem e por isso mesmo ao vivo elas interrompem antes de você terminar de falar mas quando você escreve elas leem até o final mesmo não gostando como você está fazendo exatamente agora mesmo até esta frase acabar.
Os meus vizinhos no prédio não gostam nem um pouco delas, reclamam de serem acordados pelos galos, de penas que aparecem do nada nos apartamentos do térreo e do cheiro de xixi e cocô, embora galinhas não façam xixi.
Já sugeriram chamar a polícia, denunciar na prefeitura e chamar a vigilância sanitária para dar um jeito nas coitadas.
Eu me divirto bastante, apesar de morar menos de um quilômetro da universidade federal morar com um galinheiro nos fundos sempre me passa a impressão de viver em um sítio de manhã cedo na hora de fazer o café.
Já me enturmei com o senhor Roberto dono do pedaço e uma vez ganhei uma galinha escolhida por mim ainda viva e logo após degolada, depenada e limpa e pronta para assar, a qual levei e assei com gosto na casa do Yuri naquele mesmo dia quando apostamos se o Ozzy Osbourne mordeu um morcego no palco ou não. Eu apostei sim, o Yuri disse ser lenda, e como na verdade o coitado mordeu um morcego achando ser um bicho de borracha e esquecemos de combinar o valor da aposta consideramos empate técnico e a galinha ficou pronta.
E claro, sentar na escada nos fundos do prédio e tomar sol olhando elas ajuda muito a lidar com a minha mania de metaforizar absolutamente tudo ou talvez definitivamente piore, pois elas me lembram o meu país, todos os dias, 24 horas por dia.
E o que eu vejo olhando este galinheiro de cima?
Segue:
a esquerda não tem espelho
a direita não tem reflexo
a esquerda apoia ditaduras
a direita apoia linchamentos
a esquerda mora na casa da mãe
a direita ganha mesada do pai
a esquerda quer de graça
a direita quer que alguém pague
a esquerda curte
a direita compartilha
a esquerda não sabe o que fala
a direita não sabe o que ouve
a esquerda rolezinho
a direita combo no baldinho
a esquerda é free
a direita é vip
a esquerda você é meio bolsominion
a direita você é meio esquerdinha
a esquerda tem memória fraca
a direita tem memória seletiva
a esquerda é pragmatismo político
a direita é veja
a esquerda lulatubbies
a direita bolsominion
a esquerda saul alinsky
a direita steve bannon
a esquerda sobrinha que posta no face
a direita velhinha que compartilha no zap
a esquerda senta lá meu anjo
a direita vai pra cuba
a esquerda empregada amiga
a direita empregada quase família
a esquerda control c control v
a direita CAPSLOCK
a esquerda abortista
a direita armamentista
a esquerda yoga
a direita crossfit
a esquerda chapada
a direita cheirada
a esquerda bolo vegano
a direita arroz com passas
a esquerda ...
a direita !!!
a esquerda chora
a direita grita
a esquerda se tranca no quarto
a direita bate na mesa
a esquerde escreve desse jeitx
a d1re1tA 3scr3v3 this way
a esquerda crush
a direita mito
a esquerda LACROU
a direita MITOU
a esquerda VOMITAÇO
a direita PANELAÇO
a esquerda TUITAÇO
a direita APITAÇO
a esquerda é vermelha
a direita é azul
a esquerda look
a direita visú
a esquerda tedouumabofetada
a direita daquetedououtra
a esquerda faz o L
a direita faz arminha
a esquerda mensalão
a direita rachadinha
a esquerda mamilo de graça
a direita silicone parcelado
a esquerda odeia a polícia, até ser assaltada
a direita ama a polícia, até apanhar dela
a esquerda odeia a lei, até ser injustiçada
a direita ama a lei, até tomar uma multa
a esquerda brinca de revolução
a direita brinca de solução
a esquerda peida pena
a direita arrota ódio
a esquerda caga ideologia
a direita vomita regras
a esquerda abaixa que é tiro
a direita turn down for what
a esquerda vacina
a direita cloroquina
a esquerda tranca tudo pra eu sair escondido
a direita libera tudo pra eu poder ir no shopping
a esquerda mobilização (aglomeração)
a direita motociata (aglomeração)
a esquerda vacina a qualquer custo
a direita tratamento a qualquer preço
a esquerda máscara de bichinho
a direita máscara no queixo
a esquerda crocs
a direita sapatênis
a esquerda lambe coturno
a direita lambe botas
a esquerda pede pra matar
a direita manda torturar
a esquerda distorce
a direita adultera
a esquerda mente
a direita inventa
a esquerda entendeu ou quer que eu desenhe
a direita tem de soletrar porque tá difícil
a esquerda compartilha até chegar em brasília
a direita buzina até nos ouvirem no planalto
a esquerda precisamos eleger alguém que
a direita precisamos eleger alguém para
a esquerda precisamos de uma lei que
a direita precisamos de uma lei para
a esquerda meu deus NINGUÉM faz NADA
a direita meu deus ALGUÉM faça ALGUMA COISA
a esquerda galera do bem
a direita cidadão de bem
a esquerda sempre está certa
a direita nunca está errada
a esquerda "protesta"
a direita "debate"
a esquerda aquele lá não pode continuar
a direita aquele lá não pode voltar
Sério, qual é a diferença mesmo?
Farejam como urubus, replicam como umas araras, gritam como umas gralhas.
E fazem todo e qualquer debate se tornar sempre uma merda de uma rinha de galo.
Brasileiro quando quer mudança, vota.
Quando percebe que não votar não muda nada, grita.
E repete.
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Contra a PEC tec tec.
Somos todos não sei quem.
Je suis que língua é.
Todos contra não sei o quê.
Não sei quem presente.
Força sei lá o quê.
Sempre isso e anti aquilo.
Pray for sei lá o que mais.
Todos por sabe deus quem é.
Sou contra isso e aquilo.
Ajudem esse e aquele lá.
Hashtag legalzona mil likes.
Antes ela do que eu.
Comece com você.
A esquerda defende minorias dentro de um sistema baseado na escolha da maioria e a direita defende a liberdade num sistema onde ela é concedida pelo governo.
A esquerda quer salvar o país contra tudo isso que aí está, a direita quer manter acima de tudo e de todos tudo isso que aí está.
Ah, a democracia, a política do revanchismo.
Também dizem ser do George Orwell a frase não creditada:
- Um povo que elege corruptos, impostores, ladrões e traidores, não é vítima, é cúmplice.
Minha sugestão continua sendo arrumar o quarto antes de sair de casa e deixar a louça limpa acima de tudo e o piso limpo acima de todos.
Vamos falar então do que o brasileiro mais gosta, porque não interessa o discurso, não interessa quem ganhe as eleições neste próximo domingo, o resultado é sempre o mesmo.
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Cápsulas do tempo.
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Um amigo meu falou que eu tenho um jeito leve de falar coisas pesadas e segundo ele é tão leve que chega a ser mais pesado por isto, talvez porque coisas extremamente pesadas estejam banalizadas, e que a minha escrita é uma arma.
Não vou recusar os elogios, até mesmo porque quanto mais parece um dom mais é um esforço sofrido, a ironia eu já tenho e o bolso continua cheio de metáforas, agora estou indo atrás da elegância.
Para chamar estes rascunhos de ensaios e de ensaios para capítulos vou precisar de pelo menos umas três revisões ainda então seja gentil, eu já posso ter me arrependido de metade destas linhas.
No mesmo dia o mesmo amigo soltou esta pérola:
- Crime organizado é o nome da política institucional de noite.
O ensaio todo aí em cima poderia ser resumido assim.
Alguns dias antes ou depois o mesmíssimo amigo disse não acreditar na política e também em não ver nenhum problema em ser niilista em relação a isto, e respondi sem vergonha de ser feliz ter ficado de pau duro com esta informação.
Senti até um calorão.
Niilistas Eretos, poderíamos ter um período político na nossa história definido assim, logo após a Dinastia dos Imbrocháveis.
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Por falar em elegância, creio ser sonho de todo escritor ser citado em itálico em algum lugar, não existe nada mais elegante.
Outro amigo meu me citou, em uma conversa no WhatsApp comigo mesmo mas me citou, então já posso me considerar um intelectual de internet, a versão 5G do rico no banco imobiliário.
Este meu amigo inclusive é a elegância em pessoa, tem o dom de ter paciência com pessoas as quais eu mesmo perdi faz tempo e provavelmente nunca mandou ninguém tomar no cu, algo que faço sem freio nem pudor nenhum.
Por outro lado é exatamente este o motivo pelo qual ele dorme bem e eu não durmo abraçado com a insônia, ponto para ele, mas isto me faz querer mandar ele tomar no cu também, e ainda tem o irritante detalhe do seu nome ser Márcio assim com acento.
Então tudo o que tenho para dizer agora, em itálico, é:
- Vai tomar no cu Márcio.
Desculpas a grosseria, faltou a vírgula:
- Vai tomar no cu, Márcio.
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Outro amigo me perguntou como eu consigo viajar sozinho, alegando não gostar de si mesmo o suficiente para ficar só na própria companhia.
Eu respondi ser igual mas gosto menos ainda da companhia dos outros então fico sem opções ou, em outras palavras, autoestima baixa e ego grande.
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No dia 24 de outubro o querido cartunista Ziraldo fez 90 anos de idade, como seus eternos cabelos brancos de algodão doce e sobrancelhas idem, um dos fundadores do jornal O Pasquim que abrigou a genialidade e a coragem do Ivan Lessa entre tantos outros.
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