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ENSAIO 24: UM RUSSO

Atualizado: 17 de out.



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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24/01/2023


UM RUSSO


A Lei de Murphy, o Gato de Xrodinguer, o Efeito Mandela, um machado que nunca existiu e uma lenda que se tornou verdade, uma verdade que se tornou lenda e um russo teimoso, memórias falsas e todos nós sobrevivemos para contar histórias.


Não significa não, cinco vezes seguidas.


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A Lei de Murphy não significa necessariamente que algo ruim vai acontecer mas aquilo que, se puder acontecer, acontecerá.


Baseado nesta premissa o matemático John Forbes Nash desenvolveu o Equilíbrio de Nash, uma situação dentro da Teoria dos Jogos em que, durante um jogo envolvendo dois ou mais jogadores, nenhum jogador tem a ganhar mudando sua estratégia unilateralmente, assegurando a neutralidade mútua através de interesses opostos que garantam o mesmo resultado para ambos.


Segundo este conceito, apesar dos participantes não cooperarem é possível a busca individual da melhor solução conduzir o jogo a um resultado em que se verifique a estabilidade, não havendo incentivo para que nenhum deles altere o seu comportamento.


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Gatos são estranhos, talvez esta indiferença deles em relação a nós humanos seja um chute no nosso ego, incluindo a capacidade incrível de passarem 24 horas por dia do nosso lado e ao mesmo tempo nos fazer sentir que a visita somos nós.


Esta natureza dos gatos (e a paixão deles por se encaixotar) justifica e faz um famoso e mal compreendido experimento teórico-científico parecer mais uma versão complexa de um chove/não-molha e adivinha, não tem solução conhecida e mais, sequer usa um gato de verdade porque (adivinha) apesar de ser um experimento teórico-científico trata sobre um experimento prático nunca realizado e sem solução, pois no fim é experimento teórico-científico.


Compreendeu? Calma que piora.


O Gato de Xrodinguer* (se escreve "Schrödinger" mas você não pode me obrigar) é uma experiência mental geralmente descrita como um paradoxo e desenvolvida pelo físico austríaco Erwin Xrodinguer (eu avisei), em 1935.


A experiência ilustra a importância do referencial na mecânica quântica aplicada a possíveis situações cotidianas, no caso um gato dentro de uma caixa de forma a não estar apenas vivo ou apenas morto mas sim em uma sobreposição destes dois estados, da seguinte forma:


1 – A caixa onde seria feita a hipotética experiência de Xrodinger contém um recipiente com material radioativo e um contador Geiger, aparelho detector de radiação. Se esse material soltar partículas radioativas, o contador percebe sua presença e aciona um martelo, que, por sua vez, quebra um frasco de veneno.


2 – De acordo com as leis da física quântica, a radioatividade pode se manifestar em forma de ondas ou de partículas – e uma partícula pode estar em dois lugares ao mesmo tempo! As ondas brancas desenhadas aqui representam as probabilidades de ocorrência dessa dupla realidade, quando, na mesma fração de segundo, o frasco de veneno quebra e não quebra.


3 -


3a – Aqui o gato aparece vivo porque, nesta versão da realidade, nada foi detectado pelo contador Geiger.


3b – Aqui o gato surge morto, pois nesta outra versão do mesmo instante de tempo o contador Geiger detectou uma partícula e acionou o martelo. O veneno do frasco partido matou o bichano.


4 – Seguindo o raciocínio de Xrodinguer as duas realidades aconteceriam simultaneamente e o gato estaria vivo e morto ao mesmo tempo até caixa ser aberta. A presença de um observador acabaria com dualidade e ele só poderia ver ou um gato vivo ou um gato morto.



Por sua vida supostamente atrelar-se a um evento aleatório — usualmente o decaimento radioativo — Xrodinguer interpreta que um gato "vivomorto" surgiria como reflexo de um estado físico atípico ao senso comum, mas presente em sistemas quânticos: um estado de superposição ou emaranhamento quânticos. Em termos técnicos, o estado "vivomorto" (claramente distinto do estado vivo e do estado morto), compõe-se pela soma desses dois estados e constitui de fato a situação do gato no experimento, ao menos enquanto o sistema permanecer fechado, sem ser observado.


Porém, um cuidado é necessário na interpretação da superposição de estados: não significa que ambos são válidos ao mesmo tempo.


O que tona mais confuso ainda o experimento são os questionamentos quanto à natureza do observador e da observação na mecânica quântica.


Se você, pelo fato de abrir a caixa e deparar-se com o gato ou vivo ou morto (colapso da função de onda), é ou não o responsável pela vida ou pela morte do gato (depende do observador ou depende da ação do observador?), à parte o próprio gato como observador, um conceito muito conhecido pelos antropólogos em uma área diametralmente diversa à mecânica quântica que, ao se colocar na simples posição de observadores já é capaz de alterar o ambiente e o comportamento da tribo ou sociedade sendo observada, porque nesta vivem serem conscientes da presença e perspectiva alheia.


É como se o Stephen King resolvesse dar uma de Christopher Nolan e fazer do Pet Sematary uma ficção científica.


A partir deste experimento, Xrodinguer criou o termo Verxrankung (o certo é Verschränkung mas, já sabe) cujo significado é "entrelaçamento" em português, uma palavra que pode perfeitamente resumir duas histórias maravilhosamente bizarras e ligadas por um mesmo experimento social xrodingueriano e involuntário, envolvendo (em momentos e situações diferentes) o músico Sixto Rodrigues e o político Nelson Mandela, em plena África do Sul dos anos 80 e 90.


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Sixto Diaz Rodriguez, conhecido profissionalmente como Rodriguez, foi um cantor e compositor americano de descendência mexicana e nascido em Detroit, no Estado de Michigan nos Estados Unidos, em 10 de julho de 1942.


Seu nome foi Sixto pois era o sexto filho da família e durante a sua carreira lançou dois discos, em 1970 e 1971, e que por erros da gravadora e pouca vontade das rádios da época, venderam pouco.


Mas durante décadas e sem que ele soubesse a sua música se tornou extremamente bem-sucedida e influente na África do Sul a partir dos anos 80, onde se acredita ter vendido mais discos que Elvis Presley e era considerado culturalmente semelhante ao papel de Bob Dylan nos Estados Unidos como um artista socialmente e politicamente consciente, graças as suas letras e modo de cantar, e assim conquistado o coração de jovens brancos revoltados com o regime racista e ditatorial em vigor no país.


As poucas informações disponíveis indicam que ele se tornou conhecido graças a uma americana que viajou conhecer a família do namorado sul-africano e levou um disco consigo e, por causa de informações mais escassas ainda e graças a torta criatividade de sabe-se lá quem, Sixto era vendido como um artista falecido que (dependendo da fonte) havia ateado fogo em si mesmo no palco no final de um show ou atirado em sua própria cabeça (des)motivado pela falta de sucesso.


Sixto estava vivo, e estada morto.


Em outro lado do oceano, em outro continente, Sixto fazia sucesso e estava morto, sem o seu conhecimento e consentimento, ao mesmo tempo.


Como o culto a sua música prosseguiu, na era da música digital e logo com a popularização da internet na década de 90 foi encontrado, vivo, e viveu um inesperado renascimento de sua carreira musical, a sua primeira turnê e a primeira turnê internacional, ao mesmo tempo.


Viajou para o sul do continente africano em 1998 e quando enfim se apresentou seis noites seguidas para 5.000 mil pessoas cada show em um ginásio lotado, e tocou e cantou como se estivesse vivo (que de fato estava) e com a serenidade de quem sempre merecesse o sucesso (que de fato merecia), com a mesmíssima voz grave de tom único e soturno de quando era jovem.


E tocando com uma banda de apoio de fãs locais, os quais nunca haviam ensaiado juntos com Sixto.


Durante a década seguinte viajou mais algumas vezes para o país e ainda Austrália e Nova Zelândia e sua história foi contada no documentário vencedor do Oscar de 2012, Searching for Sugar Man, cujo sucesso e exposição promoveu outro renascimento da sua carreira, desta vez no seu país natal, se apresentando em programas de rádios, festivais e universidades.


Pouco antes do dia da premiação do Oscar 2012 Rodriguez declarou que não iria na premiação pois não gostaria de tirar o foco do prêmio dos responsáveis pelo filme, o diretor Malik Bendjelloul e o produtor Simon Chinn.


Esta característica inata de ser humilde acompanhou toda a sua vida e todo o pouco dinheiro que ganhou como cantor ele destinava para as suas duas ex-esposas e as três filhas (que sempre acompanharam e ajudaram a sua carreira) e apesar do sucesso de vendas na África do Sul quase todas as cópias eram piratas feitas por dezenas de pequenas gravadoras diferentes, e estas nunca pagaram nada ao cantor.


Em maio de 2013 recebeu o título honorário de Doutor em Letras Humanas na Wayne State University em Detroit, cidade que continuou vivendo e se apresentando até falecer logo após, em 05 de Dezembro de 2013.*


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Uma coisa interessante sobre lendas urbanas é quando a partir de um ponto elas começam a gerar memórias falsas nas pessoas, que passam então a testemunhar sobre algo nunca visto ou vivenciado, como é o caso do famoso Efeito Mandela.


Nelson Mandela foi um advogado, líder rebelde e presidente da África do Sul entre 1994 a 1999, considerado como o mais importante líder da África Negra e o mais conhecido ativista contra o apartheid no país, e pelo mesmo motivo passou mais de 20 anos preso entre 1964 e 1988 e anos depois vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1993.


Praticamente na mesma época em que Sixto Rodriguez ainda estava morto e fazia sucesso no país, Nelson Mandela foi solto quase no início dos anos 90 e voltou a se envolver com política mas milhares de pessoas ao redor do mundo podiam jurar lembrar nitidamente que ele havia morrido na prisão em algum momento entre 1980 e 1990 e mais ainda, podiam jurar também terem assistido ao seu funeral na televisão.


Nelson Mandela estava morto, e estava vivo.


Uma lembrança coletiva difusa e inverídica sem nunca ter tido um ponto ou momento de origem único e espalhada como verdade e fato natural, nascia assim o Efeito Mandela, e o Nelson que emprestou o sobrenome segue vivo e ativo até os dias de hoje.


Outro episódio conhecido do Efeito Mandela mas neste caso de certa forma intencional ocorreu durante a tradicional parada do dia de ação de graças nos Estados Unidos (Macy's Thanksgiving Day Parade) no dia 28 de Novembro de 2019, conhecida pelo desfile de balões gigantes de personagens da cultura infantil e popular como Bob Esponja, Yoda, Pikachu, Charlie Brown, Garfield, Simpsons e infinitos outros e também personagens de empresas de entretenimento como o Sonic (o personagem do videgame da empresa Sega) e até mesmo mascotes das franquias de fast food como, claro, o palhaço Ronald McDonald.


No dia 28 de Novembro de 2019 o balão do Ronald Mcdonald não teve o seu melhor momento, sendo rasgado por acidente no início do desfile e esvaziado às pressas quando no exato mesmo momento a transmissão ao vivo na TV mostrou ele cheio e desfilando normalmente em uma filmagem da parada do ano anterior, provavelmente por alguma exigência contratual, criando assim dois grupos de pessoas com lembranças completamente diferentes do mesmo evento e nenhum deles estava errado.



Outro exemplo famosíssimo é o igualmente famoso discurso conhecido We Shall Fight on the Beaches do então primeiro ministro Winston Churchill na câmara dos comuns do parlamento britânico no dia 04 de Junho de 1940, em pleno início do envolvimento do Reino Unido na Segunda Guerra Mundial.


Nenhum registro de áudio foi feito no momento do discurso original e Churchill só produziu uma gravação em 1949 repetindo a sua oração anterior (a famosa gravação da introdução da sensacional música Aces High que abre o sensacional álbum Powerslave do Iron Maiden), mas apesar disto muitas pessoas após a guerra se lembram erroneamente de ouvir e se emocionarem com Churchill falando no rádio em uma suposta transmissão ao vivo direto do parlamento em 1940, discurso que até então existiu apenas impresso nos jornais da época.


Não só na Segunda Guerra Mundial mas também na Guerras nas Estrelas no Episódio V quando em uma batalha épica (provavelmente o duelo mais famoso da cultura popular) Darth Vader tenta convencer Luke Skywalker a vir para o lado negro da força.


O vilão solta então o golpe final dizendo:


- Luke, eu sou o seu pai


Pois bem, ele nunca disse assim nem no filme nem muito menos em alguma vara de família em um judiciário muito distante.


Ele apenas confrontou Luke perguntando se outro personagem havia lhe contado o que aconteceu com o seu pai quando Luke interrompe:


- Ele me contou o suficiente, ele me contou que você o matou.


Então Darth Vader muda os rumos da história e destrói agora na sua mente mais um Efeito Mandela:


- Não, eu sou o seu pai.


E já aproveito o tema para te dizer algo mais: O C3PO não é completamente dourado, ele tem uma perna prateada.


Mas tem mais ainda.


O Efeito Mandela possui até mesmo uma conferência anual para tratar do tema, embora o grupo tenha um comportamento e foco um tanto quanto terraplanista digamos, considerando o Efeito Mandela como uma falha temporal entre diferentes dimensões e claro, ao contrário das pessoas normais, eles são capazes de identificar estas falhas.


É uma pena, estes exemplos acima mostram o quão fascinante pode ser este assunto e quantos infinitos outros exemplos devem existir por aí para serem estudados.


É sabido também como a mente humana preenche vácuos de memória com histórias inventadas por ela mesma, devido a nossa necessidade de ordem e estabelecer padrões e até mesmo criar ou reforçar vínculos de validação sociais, emocionais e afetivos, pois é fato conhecido também de que resgatar uma boa memória é uma das poucas atividades com a capacidade de gerar e manter praticamente ao mesmo tempo índices saudáveis de endorfina, oxitocina, dopamina e serotonina, os tão importantes hormônios do relaxamento, amor, prazer e alegria.


Por outro lado também conhecemos como fato a capacidade de más memórias e traumas serem gatilhos constantes e insistentes de adrenalina e cortisol e é conhecido também pelo menos um episódio de quando uma agência governamental, a CIA, tentou através do projeto MK Ultra plantar memórias e emoções falsas em cobaias humanas através de experimentos com LSD e outras drogas, sem o conhecimento delas, em pleno auge da Guerra Fria.


E, como você pode imaginar, os resultados foram desastrosos e, como só podemos imaginar, nem por isso a agência parou com este tipo de experimento.


É conhecido também o hábito humano de apagar certas memórias ou até mesmo substituir por outras para nos proteger de traumas vividos, sejam na primeira infância, na adolescência ou até mesmo episódios da vida adulta como acidentes de carro, e muito comum entre sobreviventes de guerra.


Na animação/documentário Valsa com Bashir o diretor Ari Folman tenta contar a sua experiência no exército israelense durante Guerra do Líbano de 1982, embora não tenha nenhuma lembrança detalhada do período além apenas um insistente sonho onde 26 cães furiosos o perseguem e o encurralam num prédio abandonado.


Com isto em mente parte em busca de seus amigos e colegas que estiveram junto com ele para descobrir os motivos da sua amnésia até chegar no episódio do Massacre de Sabra e Chatila entre 19 e 20 de setembro de 1982.


Em uma das partes mais interessantes um amigo dele relata sobre uma pesquisa onde cientistas plantaram em pessoas a lembrança de estarem num lugar fictício através de fotos falsas.


Dezenas de fotos da infância eram mostradas e as pessoas eram convidadas a contar sobre estas fotos até chegar em uma montagem onde elas apareciam com os pais em um parque de diversões.


80% delas relataram lembrar deste dia e contaram até mesmo detalhes como os brinquedos, presentes ou até a comida e o sorvete. Os 20% que dizia não lembrar era convidado a voltar alguns dias depois para falar sobre a referida foto novamente, quando todos então confirmaram lembrar com o mesmo nível de detalhes e lembranças do 80% anterior.


O amigo de Folman conclui: a memória é dinâmica e tem vida própria, quando ela encontra pontos obscuros ela preenche com informações do ambiente e outras memórias até pintar um quadro completo.



E este é o motivo pelo qual foi decidido fazer uma animação ao invés de um documentário de entrevistas, pois o criador tem a sensação de viver como um espectador da memória dos outros, até chegar no fim da sua jornada e descobrir o motivo aterrador para ter esquecido tudo.


E quando você soma as informações acima e acaba por se interessar sobre a história da Guerra Fria, o Efeito Mandela tende a se tornar uma reação em cadeia, e a linha que separa ficção de realidade é praticamente invisível.


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Segundo a lenda, o físico italiano Enrico Fermi criou a sigla Safety Control Rod Axe Man (SCRAM) para Norman Hilberry, durante a primeira reação nuclear em cadeia feita pelo ser humano em 02 de Setembro de 1942 em Chicago, nos Estados Unidos, no início dos experimentos do Projeto Manhattan, o projeto responsável pela criação da primeira bomba atômica.


A tarefa de Hilberry naquele dia era matar uma possível reação descontrolada usando um machado para cortar uma corda e permitir que uma haste de controle e segurança caísse na pilha reativa.



Vamos recapitular o ensino médio: fissão nuclear é um processo que ocorre em núcleos atômicos instáveis e pode produzir reações em cadeia capazes de emitir grandes quantidades de energia.


O código utilizado para comunicar o sucesso do experimento foi o diálogo a seguir entre o físico Arthur Compton e o químico James Conant, presidente do então Comitê Nacional de Pesquisa Defensiva (National Defense Research Committee ou NDRC):


Compton:


- O navegador italiano atracou no Novo Mundo.


Conant:


- Como são os nativos?


Compton


- Muito amigáveis.


Italiano é uma referência a Enrico Fermi, que estava metaforicamente navegando o barco, e o Novo Mundo naturalmente era o pioneirismo do experimento e claro, os nativos amigáveis são o próprio resultado do experimento.


Neste processo foram usadas 330 toneladas de grafite, 5 de urânio metálico e 41 de pó de óxido de urânio e a potência obtida na reação nuclear foi de, respire fundo, 0,5 Watt.


Um SCRAM é um desligamento de emergência de um reator nuclear e também o nome dado ao interruptor operado manualmente que inicia o desligamento em reatores de água fervente (Boiling Water Reactor ou BWR) e reatores de água pressurizada (Pressurized Water Reactor ou PWR).


Em muitos casos um SCRAM faz parte do procedimento de desligamento de rotina e serve para testar o sistema de desligamento de emergência e em qualquer reator um SCRAM é alcançado inserindo grandes quantidades de massa de reatividade negativa no meio do material físsil efetuando imediatamente o término da reação de fissão.


Em reatores de água leve isto é conseguido inserindo hastes de controle de absorção de nêutrons no núcleo, embora o mecanismo pelo qual as hastes são inseridas dependa do tipo de reator e nos reatores de água pressurizada as hastes de controle são mantidas acima do núcleo de um reator por motores elétricos contra seu próprio peso e uma poderosa mola.


O SCRAM é projetado para liberar as hastes de controle destes motores e permite que seu peso e a mola os conduzam ao núcleo do reator, interrompendo rapidamente a reação nuclear ao absorver os nêutrons liberados.


Outros projetos usam eletroímãs para manter as hastes suspensas, e qualquer interrupção na corrente elétrica resulta em uma inserção imediata e automática da haste de controle.

Tanto nos PWR quanto no BWR existem sistemas secundários (e muitas vezes até sistemas terciários) que inserem hastes de controle no caso de a inserção rápida primária não atuar imediatamente ou não cumprir totalmente a sua função.


A etimologia do termo SCRAM é uma questão de debate.


O historiador da Comissão Reguladora Nuclear dos Estados Unidos, Tom Wellock, observa que SCRAM é uma gíria em inglês para sair rapidamente e com urgência, e cita esta como a base original e mais provável para o uso do termo no contexto técnico.


A persistente explicação de que SCRAM é um acrônimo para Safety Control Rod Axe Man foi supostamente cunhado por Enrico Fermi quando o primeiro reator nuclear do mundo foi construído sob o assento de um espectador da Universidade de Chicago, onde supostamente haveria uma haste de controle real amarrada a uma corda e um homem com um machado ao lado dela.


A história do homem do machado na frente de um reator nuclear criou vida própria e faz parte do imaginário popular até mesmo como uma projeção das tensões vividas no período da Guerra Fria.


Existe até mesmo uma versão mais fantasiosa desta história quando Fermi decepcionado com as capacidades físicas de seus colegas físicos recrutou um lenhador do noroeste do pacífico para fazer o trabalho e esta versão ganhou mais força ainda nesta máquina de boatos e lendas chamada internet, e o próprio acrônimo mudou para Super-Critical Reactor Axe Man e Start Cutting Right Away, Man.


Norman Hilberry ao que parece só soube desta história anos depois, e por si só já cria uma dúvida à versão do tal homem do machado e outros membros da equipe lembram uma origem diferente para o termo.


Leona Marshall Libby, a única física mulher presente naquele dia, escreveu em suas memórias que foi Volney "Bill" Wilson quem chamou as hastes de segurança de "hastes scram".


Ela não explicou por que ele usou o termo, mas seu crédito a Wilson foi apoiado por outros envolvidos no projeto, incluindo outro físico de nome Warren Nyer.


Nyer foi contatado pelo historiador Thomas Wellock em 2021 e a sua versão do termo também desacredita a existência de um machado no dia do experimento.


O trabalho de Nyer no dia era ser o reserva de Norman Hilberry e se todos os sistemas de segurança falhassem ele e os outros membros do chamado não ironicamente de "esquadrão suicida" despejariam uma solução líquida de cádmio no reator para envenenar e cessar a reação. A história do homem do machado é segundo ele "um monte de bobagens".


E então ele ofereceu outra explicação para a palavra.


A sua lembrança era que Wilson estava montando um painel elétrico e nele incluía um grande botão vermelho. De acordo com Nyer, alguém perguntou a Wilson o motivo do botão vermelho e este respondeu que ele deveria ser pressionaria se houvesse algum problema e o diálogo foi aparentemente o seguinte:



- Bem, e depois de apertar este botão o que você faz?


E Wilson teria respondido:


- Você sai correndo daqui.


You scram out of here.


E então a palavra pegou e assim o botão foi nomeado.



Sendo bem sincero, quando um cientista tem como diretriz do experimento a possibilidade de sair correndo sem olhar para trás, é porque ele sente medo o suficiente para nem um elétron passar pelo próprio cu.



E assim a história foi escrita a partir de uma lenda e SCRAM se tornou um bacrônimo (do inglês "back" = "para trás + "acronym" = "acrônimo") ou seja, uma expressão cujas palavras surgiram depois para se encaixar na palavra original, e uma gíria passou a ser uma sigla póstuma pelo excesso de criatividade, e um tanto de senso de humor, de físicos fofocando no corredor de um projeto ultra-secreto.


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Por falar em entrar para a história e teimosia Stanislav Petrov nasceu no dia 07/09/1939, em pleno início da Segunda Guerra Mundial.


E quem foi ele? Ele foi o cara que salvou a humanidade, eu, você, todos nós.


Existe uma piada bem conhecida entre os russos e ela conta mais ou menos o seguinte:


Um russo morre e, como todos os russos, vai parar no inferno.


Chegando lá é recebido pelo diabo e ambos vão caminhando até o local do caldeirão onde ele irá passar a eternidade ardendo. No caminho eles passam por dois caldeirões rodeados de diabinhos armados com seus tridentes.


E o diabo então fala:


- Aqui ficam os ingleses, se um deles tentar sair os diabinhos cutucam ele de volta para dentro.


E na sequência:


- E aqui os norte-americanos, quem arriscar sair os diabinhos avançam em cima da mesma forma.


E aí eles chegam num caldeirão tão grande quanto a Rússia, lotado de russos, sem nenhum diabinho cuidando.


O russo resolve então perguntar:


- Por que não tem ninguém vigiando?


E o diabo responde:


- Se um de vocês tentar sair, os outros puxam de volta.


Não é à toa, a espiral do silêncio faz parte de toda e qualquer cadeia de comando na Rússia e afeta até mesmo as relações pessoais e afetivas do povo desde a Revolução Russa de 1917.


E durante a Guerra Fria não seria diferente até que um dia Stanislav Petrov esteve no lugar certo e na hora certa.


E tomou a atitude certa.



No dia 26/09/1983 Petrov era tenente-coronel de um bunker em Moscou responsável pela interceptação de mísseis nucleares inimigos (leia-se norte-americanos) e se recusou a confiar nos computadores capengas da antiga URSS indicando um míssil nuclear vindo em sua direção.


E nos minutos seguintes um segundo, um terceiro, um quarto e um quinto míssil.


Se os computadores estivessem errados e ele confiasse, se tornaria o responsável direto pela informação que inevitavelmente implicaria na ordem de ataque russo sem motivo e início então da terceira guerra mundial.


Se os computadores estivessem certos e ele não confiasse, milhares ou milhões de russos morreriam nos minutos seguintes, portanto a retaliação russa seria obrigatória e a guerra seria também inevitável.


Metade das populações de ambos os países estaria morta antes do amanhecer e muito provavelmente em poucos dias ou semanas não haveria mais nenhuma vida no planeta terra.


Estávamos todos vivos, e todos mortos.


Mas ele estava certo, ninguém estava atacando ninguém e os sistemas em curto haviam disparado seguidos alarmes falsos e o mundo foi salvo pela intuição, insubordinação e coragem de Petrov.


Petrov não apenas tomou uma decisão insuportavelmente difícil em um intervalo de tempo humanamente impossível, ele foi contra toda uma cultura, do seu próprio exército, do seu próprio país e da guerra fria em si.


Petrov foi contra a mais russa das atitudes: decidir e confiar o próprio destino em equipamentos falhos que pareciam já ter nascido obsoletos porque essa era a ordem social e militar no país, com legados terríveis na história da humanidade como o acidente nuclear de Chernobil e a escabrosa morte do cosmonauta russo Vladimir Komarov.


A guerra fria foi o período político e social onde todo o medo, tensão e paranoia pareciam ter justificativa. Foi uma época tão surreal na história humana que desenhos animados e comerciais de TV mostravam como agir em caso de ataque e uma casa própria com um abrigo nuclear subterrâneo era o sonho de toda família norte-americana.


E a cronologia das tensões entre quase cinco décadas vivendo na iminência da morte se alternava entre a arte imitar a vida e a vida imitar a arte sem nos dar chance de respirar e pensar.


Como no filme Fail Safe, de 1964, quando uma falha no equipamento emite um sinal com um código irreversível para aviões bombardeios norte-americanos no ar jogarem duas bombas sobre Moscou (e a única solução aparentemente possível para evitar a guerra máxima era o presidente dos Estados Unidos oferecer bombardear Nova York em troca) ou quando o Norad (o Comando de Defesa Aeroespacial dos Estados Unidos) quase tornou isto realidade em pelo menos três datas (re)conhecidas (9 de novembro de 1979, 3 de junho de 1980 e 6 de junho de 1980) onde, por falha humana ou computacional, seguidos alarmes falsos não só indicaram aviso de ataque como também ordem para decolagem de aviões armados com bombas para retaliar a URSS.


Ou como quando, no dia 03 de junho de 1983, foi lançado o filme WarGames, com Matthew Broderick curtindo uma guerra fria adoidado e invadindo sem querer o sistema do departamento de defesa para iniciar a terceira guerra mundial no café da manhã como se nossas vidas dependessem literalmente de um jogo de xadrez e, três meses depois no dia 01 de setembro de 1983, o voo Korean Air Lines 007 invadiu sem querer o espaço aéreo soviético e foi destruído por um míssil matando 269 pessoas, todas civis, sendo destas 62 cidadãos norte-americanos.


Inclusive este incidente tornou o sistema GPS acessível para o uso civil por ordem do então presidente Ronald Reagan, o que teria evitado essa tragédia pois até esta data o sistema só era disponível para militares.


E mais, dois meses após o incidente com Petrov, os Estados Unidos lançaram o agoniante filme The Day After no dia 20 de novembro de 1983 onde, sim, a terceira guerra mundial acontece e o cogumelo atômico é o personagem principal.


O teatro do absurdo constante fazia as pessoas desmaiarem de pânico nas salas de cinema e as notícias de jornal parecerem trailers de filmes.


No fim de tudo, seja no cinema ou na vida real, ninguém resumiu tão bem quanto o filme Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb do Stanley Kubrick e lançado em 1964, onde o simples fato deste filme ter sido escrito como um suspense e foi se tornando uma comédia ao longo da produção já dá uma mostra da surrealidade de ter vivido neste período.


No fighting in the war room é uma expressão capaz de tornar o maior dos estadistas em uma criança mimada.


Nunca uma guerra foi tão planejada e ao mesmo tempo tão indesejada, afinal quando a morte já está garantida por todos os meios possíveis todos os esforços humanos são direcionados para como se preservar a vida.


Esta é a ironia da Guerra Fria, uma queda de braço sem fim onde quem vencesse sairia perdendo também, a Destruição Mútua Assegurada, ou Mutual Assured Destruction (MAD, isso mesmo, louco) doutrina estratégica militar onde o uso maciço de armas nucleares por um dos lados iria efetivamente resultar na destruição de ambos, atacante e defensor, baseada na teoria da intimidação através da qual o desenvolvimento de armas cada vez mais poderosas é ironicamente essencial para impedir que o inimigo use as mesmas, efetivamente uma forma do Equilíbrio de Nash, onde ambos os lados estão tentando evitar a pior das consequências, a aniquilação nuclear.


Em outras palavras, quanto mais tecnológico e potencialmente destrutivo se torna o equipamento de um exército e por consequência mais o exército oposto faz o mesmo investimento, mais tende-se a garantir a paz através deste processo.


Mas se na cultura geral e no noticiário noturno a paranoia nuclear fazia sucesso nos Estados Unidos, na União Soviética não havia espaço para entretenimento, existia apenas a paranoia silenciosa, o controle e a compartimentalização extrema de informações, uma nação gigante acostumada a fabricar tubos gigantes de papelão pintados de preto para imitar mísseis e impressionar a opinião pública (e espiões ocidentais) nas paradas militares.


A história real de Petrov foi mantida como segredo de estado até 1990, quando então um general de nome Yuri Votintsev publicou as suas memórias e incluiu o seu papel como decisivo naquele dia.


E aqui está o maior motivo pelo qual eu admiro tanto Stanislav Petrov.


Petrov não estava no topo da cadeia de comando. Ele era responsável por um setor, estratégico, mas apenas um setor.


Se sobrasse alguma vida e algum tribunal para julgá-lo poderia alegar estar apenas fazendo o seu trabalho, ou estava somente cumprindo ordens, que ele não comandou o ataque, que a culpa era do computador.


Poderia confortavelmente apenas passar adiante uma informação errada e seus subordinados não questionariam nem antes nem depois e seus superiores iriam pela mesma ótica.


Petrov disse não.


Como era esperado não foi reconhecido como herói e nem promovido por ter quebrado o protocolo militar e apesar de não ter sido preso ou executado como traidor foi repreendido burocraticamente, outro hábito destruidor de espíritos tipicamente russo, sendo isolado pelos que estavam ao lado e abaixo, e punido pelos que estavam acima.


Triste ápice na vida de um homem forçado a entrar para o exército pelo próprios pais aos 17 anos de idade como forma de abandono e seguindo carreira militar por simplesmente não ter mais para onde ir.


Um ano depois deste episódio saiu do exército e vejam só, foi trabalhar desenvolvendo os sistemas de interceptação de mísseis da Rússia, e alguns anos depois se aposentou para cuidar da sua esposa, já em estado de câncer terminal.


Naturalmente toda esta experiência de vida fez dele um pacifista e um anarquista de sofá e também de forma involuntária Petrov pode ser considerado o maior objetor de consciência da história.


Viveu na angústia como se estivesse sempre certo (que de fato estava) e morreu sem o reconhecimento devido (que de fato merecia).


Obviamente não vai virar filme ganhador de Oscar e muito menos filme no seu país natal, cujo governo prefere tratar a lembrança como uma simples casualidade de guerra entre tantas outras.


As poucas homenagens recebidas foram de outros países, incluindo os Estados Unidos, para onde viajou duas vezes. Morreu anônimo e pobre em 2017 e até hoje em dia poucos sabem ou lembram seu nome.



Na Rússia só existem dois tipos de pessoas, os cidadãos e os dissidentes.


Existe um documentário muito bonito sobre ele, The Man Who Saved the World, que demorou dez anos para ser finalizado justamente pela sua incapacidade de se abrir pessoalmente, ou talvez para manter para si a única coisa ainda não tomada em vida, a sua voz interior.


E isto é muito ser russo também.


Não existe Efeito Mandela em uma cultura onde toda a memória é sufocada.


Tem pelo menos uma cena hilária no documentário quando ele venera o ator Robert Deniro enquanto ignora o ator Matt Damon e ainda um Ashton Kutcher nervosíssimo tentando trocar algumas palavras e muitos dos diálogos e o final são simplesmente de cortar o coração.


Quem arriscar tentar ver vai se emocionar.


Que pequeno grande homem, dentro do exército, numa posição estratégica (e ao mesmo tempo sufocante) e no momento mais tenso de toda a história moderna, sem que ninguém soubesse, Petrov disse não.


E graças a ele, estamos vivos para contar histórias.


Ufa.


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A história de Petrov nos serve de felizmente poder acordar e lembrar de um pesadelo nunca ocorrido mas claro, como podemos imaginar ao lembrar da era da paranoia atômica nem todos tiveram a mesma sorte, e algumas dezenas tiveram duas vezes o mesmo azar.


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Por falar em Guerra Fria e memória sufocada o japonês Tsutomu Yamaguchi nasceu no dia 16 de Março de 1916 na cidade de Nagasaki.



No dia 06 de Agosto de 1945 ele tinha 29 anos e estava cumprindo o seu último dia de contrato de três meses de trabalho para a Mitsubishi na cidade de Hiroshima quando a primeira bomba atômica da história explodiu a 3 quilômetros de onde ele se encontrava.


Ficou parcialmente surdo e cego, em estado de choque e com queimaduras pelo corpo. Quando se recuperou é desnecessário, e até inenarrável, descrever o que ele viu.


No mesmo dia encontrou alguns colegas de trabalho e eles decidiram ir para Nagasaki procurar por melhor tratamento de saúde e ficar com suas famílias.


Chegaram no dia 08 de Agosto e no dia seguinte, mesmo ferido, Tsutomu decidiu ir trabalhar.


Neste período o Japão já havia declarado guerra total, significando que todo cidadão maior de idade era considerado apto para lutar e trabalhar nos esforços de guerra, e por isso mesmo toda cidade japonesa era considerada um alvo militar.


O próprio Tsutomu era engenheiro e trabalhava projetando navios em uma época onde se dez navios fossem lançados ao mar e um retornasse, o trabalho era considerado um sucesso.


E o estado de guerra ao mesmo tempo também significava o controle máximo da circulação de informações pelo império japonês dentro da sua própria nação, de modo que quase ninguém em Nagasaki soube ou acreditou sobre o ocorrido em Hiroshima.


Todas as grandes cidades japonesas, principalmente as portuárias, já haviam sido intensamente bombardeadas pelo exército norte-americano durante a guerra, mas apenas uma única bomba causar tanto estrago e mortes parecia ruim demais pra ser verdade.


Na manhã de 09 de Agosto de 1945 Tsutomu estava contando o que viu para o seu chefe desacreditado quando a segunda bomba atômica da história atingiu a sua cidade natal.


E mais uma vez, duplamente desnecessário descrever o que aconteceu a seguir.


Pela segunda vez, Tsutomu estava duplamente vivo e morto/morto e vivo ao mesmo tempo.


Tsutomu sobreviveu novamente e apesar de ter estado praticamente no hipocentro de ambas as explosões, viveu com relativa saúde até os 93 anos de idade.


O Japão é um país maravilhoso e estranho, provavelmente o país com mais memoriais para cada evento histórico e ao mesmo tempo reprime a memória e a voz dos próprios cidadãos.


Tsutomu ficou mais de 60 anos lidando em silêncio com suas memórias principalmente para preservar a sua família mas aos 93 anos de idade (um sentimento que Petrov conheceu muito bem também) e no último ano da sua vida pediu reconhecimento do governo como sobrevivente duplo.


Existiram cerca de 160 sobreviventes duplos conhecidos na história do país, chamados de Niju Hibakusha, mas somente Tsutomu possui o reconhecimento oficial. E quase um ano depois desse reconhecimento, morreu de câncer no estômago.


O comediante britânico Stephen Fry em uma atitude infeliz em 2010 fez uma pergunta em tom de piada ao falar sobre Tsutomu Yamaguchi, perguntando se ele seria o homem mais sortudo ou o mais azarado da história.


Obviamente toda ironia boa é uma ironia doída mas na verdade é impossível decidir entre o que pode ser pior: Morrer jovem por uma bomba (a primeira ou a segunda) ou viver o suficiente para envelhecer e passar o resto da vida não apenas com esta lembrança, mas conviver com e testemunhar pela vida toda as consequências e mortes causadas pela radiação no seu país, na sua cidade natal e na sua família.


Morrer jovem sem a chance de escrever a própria história ou sobreviver e só ter uma história horrível para contar?


E nenhuma das opções ser escolha sua?


E não só isso, viver por décadas assistindo a expansão do programa de bombas nucleares em praticamente todos os continentes, e em silêncio. Passou a velhice escrevendo poemas narrando seu testemunho e após a morte da sua esposa viveu os últimos anos da sua vida viajando como ativista anti-proliferação de armamento nuclear.


Viveu na angústia como se desejasse a morte (que de fato desejou) e morreu sem conseguir a paz (que de fato tentou).


Ironicamente não, não foram as bombas de Hiroshima e Nagasaki que forçaram a rendição do Japão, mas sim a entrada da URSS na guerra contra o país no exato mesmo dia do ataque nuclear de Nagasaki.


Até agosto de 1945 Tóquio por exemplo já havia perdido quase 100 mil vidas para os constantes bombardeios aéreos do exército norte-americano, e como nós já sabemos presidentes e imperadores são ótimos em mandar o povo lutar até o último homem, desde que este último homem não seja um presidente ou um imperador.


Mas quando os soviéticos romperam o tratado de neutralidade e o exército invadiu a Manchúria ocupada pelo exército japonês os japoneses então decidiram se render aos norte-americanos porque na visão deles os Estados Unidos (ao contrário da União Soviética) preservariam o imperador e e a cultura do país, o que de fato acabou se concretizando marcando assim o final da Segunda Guerra Mundial e o início da ocupação e reconstrução do Japão.


A narrativa de que as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram a real motivação da rendição serviu duplamente (e silenciosamente) para ambos os países, os Estados Unidos ficariam com a fama e imagem de grandes vitoriosos e salvadores do ocidente e o Japão com a imagem de uma das maiores vítimas da guerra, jogando assim uma nuvem cinzenta encobrindo as relações nazistas de uns e os campos de concentração de outros.


É muito fácil romantizar a guerra fria, principalmente para quem não viveu ela na pele, foi com toda certeza a guerra onde mais armas foram criadas e produzidas com o propósito de não serem utilizadas.


Revoadas e mais revoadas de aviões que nunca soltaram uma bomba sequer, pássaros de um mal presságio que nunca se concretizou.


Como costuma-se dizer por aí para ter paz é preciso dominar a guerra, e para dominar a guerra é preciso mostrar poder. Ser pacífico não é soltar uma pomba branca, ser pacífico é ter o pássaro da guerra nas mãos e não abri-las.


O sonho de todos é o pesadelo controlado de alguns, poucos países podem jogar este jogo e menos países ainda poderiam jogar até o fim onde novamente todos perderiam, a guerra fria foi a guerra dos que puderam e felizmente não quiseram.


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Eu não lembro de ter alguma memória falsa implantada em mim (talvez ela tenha sido implantada e por isso mesmo eu não lembre ser falsa) mas lembro de conscientemente de ter o hábito contar algumas histórias de amigos como se fossem minhas para outros amigos, porque eu gostaria de ter vivido elas, e contar histórias minhas como se fossem de outros, porque sei que se contasse como minhas as pessoas não acreditariam.


Se, quando e como elas aparecerão aqui (ou se já apareceram) vamos conversar muito a respeito pois estas linhas aqui são um processo para resolver isto.


E claro, eu também conto algumas mentiras para tornar a realidade mais fácil como provavelmente você também o faz.



Mas neste mundo onde o fim parece estar sempre na esquina nos esperando, vamos mudar de tom e ao invés de memórias vamos falar de lembranças e falar também um pouco, ou muito, sobre permanência, e mostarda amarela.


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*Psiu, por falar em mentir, eu menti para você e Sixto Rodriguez não morreu no dia 05 de Dezembro de 2013 e ainda está vivo, vivão, e eu sei que você teve preguiça de pesquisar, foi o Nelson Mandela que morreu nesta data. mas eu também já te avisei que não gosto de usar *, logo você poderia ao menos ter desconfiado.


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Cápsula do tempo.


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A série Everything Sucks, na Netflix, é tipo uma versão grunge anos 90 da novela Carrossel, só que o Cirilo é um moleque para lá de descolado e a Maria Joaquina é uma gatinha que na verdade está se descobrindo lésbica.


A criançada atua incrivelmente bem (parto do princípio que interpretar a si mesmo, ainda mais nessa idade, deve ser uma das coisas mais difíceis possível) e a série segue o padrão tragicomédia: é leve e espirituosa mesmo nos momentos tristes.


Nos anos 90 tudo era sobre se adequar, a ressaca dos anos 80 (a década ressaca por si só), ou como diziam: Everything sucks and everyone is trying to look cool, onde os estereótipos pareciam ser regra para sair de casa, e a trilha sonora é cheia daquelas músicas que dizemos odiar mas sabemos cantar inteiras.


Aí eu fui pesquisar para ver quando sairia a segunda temporada e descobrir que a série foi cancelada porque simplesmente a maioria dos assinantes da Netflix nem terminava de assistir o primeiro episódio.


Bom, quero acreditar que isso diz mais sobre o nível do público espectador que da qualidade da série em si, pois ela tinha de tudo pra ser uma That 70's Show dos anos 90 e até mesmo mais séria, como uma mistura de Friends com Mad Men mirim, principalmente pelo contexto da passagem dos anos na vida das pessoas.


Seria ótimo poder ter dez temporadas e acompanhar o roteiro passar a barreira dos anos 2000, ver o desenvolvimento dos personagens e atores crescendo ao longo dos anos e a vida adulta cobrando os primeiros boletos, que pena.


Mas existe um consolo, saiu na mesma Netflix a série That 90's Show, com os personagens filhos e netos dos personagens originais da That 70's Show, se por acaso você viveu e tem lembranças dos anos 90 você invariavelmente vai rir e se emocionar e claro, Kitty Forman is back motherfuckers.


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