Foto: Ayrton Cruz
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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07/02/2023
Neurologistas e cirurgiões plásticos, dinheiro escondido nas meias e na cueca, comida de rodoviária e mostarda amarela.
Adolescentes se fazem de bobos, velhos se fazem de loucos e ambos são muito estranhos.
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O avô de um amigo meu sofreu de Alzheimer por muitos anos antes de morrer e por conta da doença (e para fazer ele se sentir melhor) a família tentou de tudo para manter a mesma rotina de sempre na medida do possível e dar a ele uma certa autonomia de vida.
Um dia eu estava almoçando na casa deles e alguém na cozinha falou:
- Tem de ligar para marcar o médico do vô.
Pois o tal vô tomou a dianteira e disse:
- Deixa que eu ligo.
Ligação feita, consulta marcada, pequenos sorrisos felizes com a audácia do avô esquecidinho.
Nas semanas seguintes soube então que uma secretária ligou pedindo para confirmar a consulta do avô com o cirurgião plástico e a mãe do Daniel virou para o pai, aquele avô esquecido, e perguntou:
- Você marcou consulta com o doutor tal, cirurgião plástico?
E o avô apenas respondeu:
- Ah sim, eu sei.
Após a consulta veio a decisão: neurologista ele ia sempre, o velho agora queria retirar as olheiras, corrigir a papada no pescoço e dar uma afinada no rosto na base do bisturi e botox, e iria sair caro.
Quando a filha reclamou, ele não pensou duas vezes e respondeu:
- Não tem problema, quando for a hora de eu me arrepender já terei esquecido.
E se você pernsar ter sido uma ironia involuntária ele emendou:
- E se eu não lembrar de vocês quando estiver morrendo pelo menos vocês vão lembrar de mim bonito enquanto estava vivo.
E então a sua própria filha concluiu:
- O pai aprendeu a se fazer de louco depois de velho.
Assim foi, operou, viveu mais um pouco, esqueceu mais um pouco ainda e quando resolveu morrer não lembrava de muita coisa.
Mas que estava bonito, estava.
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Na Bílbia Cristã os Evangelhos Sinóticos, ou Evangelhos Sinópticos, são aqueles escritos pelos apóstolos que narram a vida e ministério de Jesus Cristo sob o mesmo ponto de vista como é o caso dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas.
O termo sinótico significa “visão conjunta”, no sentido de expressar a mesma visão sobre algo.
Das metáforas e parábolas mais conhecidas destes evangelhos as mais conhecidas são a Parábola do Grão de Mostarda e a Parábola do Fermento.
A Parábola do Grão de Mostarda é registrada nos Evangelhos Mateus 13:31,32, Marcos 4:30-32 e Lucas 13:18,19, parábola também conhecida como Parábola da Semente de Mostarda.
Embora a semente de mostarda seja uma das menores sementes, com cerca de apenas dois milímetros, quando cresce se torna uma das maiores plantas com um pé adulto podendo chegar perto de três metros de altura e embora não siga a definição e nomenclatura humana de árvore as aves não se importam e se aproveitam da sua sombra e fazem ninhos nos seus ramos.
As suas folhas são comestíveis e dependendo das variedades podem ser verdes, amareladas, roxas, lisas ou crespas e as raízes, flores e caules também podem ser consumidos, a mostarda é rica em minerais como cálcio, magnésio, potássio e fósforo e também possui vitaminas essenciais como as do complexo B e as vitaminas C e E.
Todo molho mostarda é feito do pó ou farinha da semente com mosto (a pasta da uva em início de fermentação da produção de vinho), vinagre, sal e condimentos como a cúrcuma, presente na mostarda amarela.
O ensinamento de Jesus nesta parábola é uma clara comparação entre a pequena semente da mostarda que o homem plantou em seu campo e o Reino dos Céus na terra.
Olhando para o grão parece que ele jamais crescerá tanto e mesmo muitas vezes parecendo insignificante no seu início certamente produzirá grandes resultados e mesmo que, como no meu caso, você precise fugir do seu reino às vezes para compreender.
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A primeira vez que eu fugi de casa eu sabia exatamente onde queria ir: na pista de skate do parque Jardim Ambiental II em Curitiba.
Cheguei lá perto das nove horas da manhã e perto das treze horas já estava sem dinheiro, todo roxo de socos e pontapés, encharcado e chorando só de cuecas e esperando as minhas roupas e o meu skate secarem no sol para poder voltar para a minha cidade natal.
A passagem de ônibus da volta esfarelou toda no bolso da minha bermuda por causa do banho de lago e tive de chorar mais um pouco na rodoviária para poder embarcar de volta para casa.
Dois dias depois eu estava exatamente no mesmo lugar e no mesmo horário, um sentimento estúpido e insistente que somente a minha vó entenderia, e entendeu perfeitamente sem dizer uma única palavra sobre o assunto.
De teimosia adolescentes e avós entendem bem, aliás existe uma zona comportamental onde só adolescentes e avós convivem, o adolescente tem com os avós a liberdade que não tem com os pais, os avós dão para o adolescente a liberdade que não deram para os filhos, um mundo estranho de duas gerações separadas no espaço-tempo por uma geração.
Alguns anos antes, quando eu tinha dez anos de idade, briguei com o vendedor de uma loja porque a bicicleta na vitrine estava empoeirada, uma bicicleta azul (a tão sonhada por todos da minha idade, a famosa Caloi Extra Light) que todos os dias eu passava na frente da loja para olhar.
O vendedor contou para a minha avó (interior, todo mundo sabe quem é a avó dos outros) e ela foi lá e comprou a bicicleta para mim.
E limpou todo o pó antes de me dar.
Sem jeito para essas coisas, deixou a bicicleta no porão da casa encostada na lenha empilhada, eu achei e fui perguntar de quem era.
Ela respondeu:
- É tua, ninguém anda de bicicleta aqui.
Ela se arrependeu do presente, eu saía para pedalar e só aparecia de volta em casa para comer e dormir, e olhe lá.
Me deu então um videogame na tentativa de me fazer ficar dentro de casa.
Levei o videogame ainda na caixa para um vizinho meu e voltei com outra bicicleta igualzinha a minha, mas vermelha e então eu tinha uma azul e uma vermelha e só voltava para casa trocar de bicicleta, comer o pão dela e dormir.
Só fui ficar um pouco mais em casa, muito entre aspas, quando descobri o Rock and Roll.
E ela se acostumou com isto também e inclusive aprendeu a gostar, fazia cara que não mas os pés batendo no ritmo entregavam.
A velha gostava de Jethro Tull (a banda da flautinha), Joy Division (a banda do fanho que canta bem) e Dead Kennedys (a do cantor com voz do Pato Donald).
Nunca vou entender como ela sem nunca ter falado inglês na vida sabia que o Ian Curtis era fanho, mas mesmo assim existiam limites: odiava Iron Maiden, Slayer e Carcass por motivos óbvios.
Fez cara feia para o Deicide e para o Pantera por motivos mais óbvios ainda.
Aliás um dos melhores conselhos que ela me deu na vida foi: "Você vai ficar papudo se ficar imitando esses glebento aí".
Sim, eu expliquei quem era o Glen Benton pra ela, com fotos da cruz de ponta-cabeça queimada na testa e pelado numa banheira com sangue de porco e ela se limitou a perguntar se ele morava longe.
Nenhuma cruz nunca impressionou ou assustou ela, fosse uma normal ou invertida.
Quando mostrei um vídeo do Pantera ela se limitou a perguntar:
- Esse Pantera aí não tem amigo né?
E então eu descobri o Reggae.
Mas antes, um pouquinho antes, eu descobri o Otis Redding.
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Uma lembrança e uma notícia.
Quando eu já estava mais enturmado costumava sair da pista do Jardim Ambiental II uma ou duas horas antes de pegar o ônibus de volta para casa e este momento era muito decisivo nas minhas fugas e nos meus dias por lá, era a oportunidade única de gastar o dinheiro dobrado dentro da cueca ou das meias (agora você já sabe porque dinheiro tem cheiro de cu e chulé) em disco após sentir fome o dia inteiro.
Nesta época eu sempre tinha de decidir e escolher entre me dar ao luxo de gastar com algo fútil como comida ou suprir uma necessidade básica que era comprar disco.
Minha vó (nesta altura já cúmplice das minhas fugas) sempre me dava um dinheirinho para comer, que ela colocava escondido na minha mochila sempre no mesmo bolso e eu fingia não saber.
Quando ela percebeu que eu voltava sempre com disco embaixo do braço e esfomeado como um cão de rua começou a colocar dois dinheirinhos na minha mochila na esperança de que eu pelo menos comesse alguma coisa.
Deu muito errado, comecei a comprar mais discos ainda.
Aí ela desistiu e nos dias em que ela sabia que eu fugiria para Curitiba fazia dois pães, porque invariavelmente eu comeria um inteiro assim que abrisse a porta de casa.
Em uma destas tardes pouco antes de chegar no Alto da XV passei por uma casa onde estava tocando uma musica bem alto e como sempre faço desde que me conheço por gente parei para ouvir e logo tocaria a campainha para perguntar o que era.
Se deixavam (e muitas vezes deixavam) entrava na casa e fuçava em tudo e pedia revista, livro e disco emprestado e de presente (e muitas vezes ganhava).
Fiquei um tempo sentado no muro ouvindo, então olhei de lado e percebi um coroa na janela me olhando.
Perguntei que musica era, ele sorriu e mostrou a capa e anotou num pedaço de papel: Otis Redding - The Dock of the Bay.
E lembrou que o nome do disco era o nome da musica que estava tocando.
Fui voando num sebo de discos entre o Passeio Público e o Largo da Ordem ver se tinha, não lembro o nome da rua. Não tinha este mas comprei outro dele, o Tell the Truth.
Foi o primeiro artista de Soul Music que conheci e até hoje o meu favorito.
O dono na loja me empurrou o Legalize It do Peter Tosh ("leva que é de negão também") e escolhi mais um vinil pirata do Hot Rats do Frank Zappa.
Voltei para casa sem comer (pra variar), porque após oito horas andando de skate o dinheiro acabou em disco.
Meu primeiro disco de Reggae e meu primeiro Zappa também, comer para quê?
Azia musical eterna.
Mas não gostei daquele disco, achei feliz demais (???) e ignorei o Franzk Zappa sem lembrar o motivo, fiquei umas duas semanas ouvindo o Legalize It do Peter Tosh, um dos discos mais lindos de todos os tempos.
Quase um mês depois fui achar o tal The Dock of the Bay no Shopping Muller, novinho, lacrado.
Mais um dia fedido de skate, sem comer e voltando para casa com disco embaixo do braço.
Aí em casa uma coisa pegou muito fundo quando ouvi esta música pela segunda vez.
E pela terceira e quarta, cada vez parecia ser a primeira vez.
E se você tem um coração, ela faz um risquinho nele também toda vez que você a ouve.
Não é de graça que se chama Soul Music, vem de dentro e toca fundo quem ouve e faz você esquecer de comer, de pensar, de respirar. Tudo o que é complexo fica simples perto dela, tudo o que é vago se torna palpável, o que é incerto se torna seguro.
Quem diria, eu com 13 ou 14 anos de idade sentindo melancolia.
Por causa desta música eu demorei para me acostumar com o Otis Redding anterior, ela era parte da mudança da direção musical dele mas eu conheci este lado primeiro.
The Dock of the Bay foi lançada semanas após a sua morte, eu fui nascer uma década depois e levei mais outra década para conhecer.
Nunca mais parei naquela casa nem de passar por lá, devo ter ficado com vergonha de agradecer, algo assim.
Esta é a lembrança, a notícia é que no dia 08 de Janeiro de 2023 esta obra de pouco mais de dois minutos e meio fez 55 anos de idade do seu lançamento.
Amo todos os momentos que tive com ela e todas as vezes que ouvi era foram momentos e espero poder viver até os 90 anos para poder continuar ouvindo até lá e dizer para todo mundo:
- Hoje esta música está viva e fazendo 100 anos de idade.
Porque daqui a 45 anos ela vai estar ainda mais linda e fazendo mais sentido ainda e se você não percebeu isto é uma declaração de amor.
Otis Redding, eu te amo.
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Minha vó conheceu Otis Redding, Frank Zappa e o Peter Tosh junto comigo, naquela comunicação passiva como era de hábito, eu colocava o disco, aumentava o volume fingindo não perceber ela por perto e esperava a reação dela, se ela era indiferente ou batia os pés no chão a aprovação era certa.
Dois pés batendo?
Nota 10, e assim foi com o Reggae.
E sobre o Legalize It especificamente eu nem preciso falar muito, é muito mais fácil resumir ele falando de você: Se você ouvir esse disco e não sorrir você não tem coração, e se você não se emocionar você não tem alma.
Mostrei a capa para ela que perguntou se ele era brasileiro e duas semanas depois como Peter Tosh não tinha flauta, não era fanho, não tinha voz de Pato Donald, não urrava como o Glen Benton e parecia ter mais amigos que o tal do Pantera quando a minha avó percebia que eu iria colocar alguma música para ouvir ela pedia sem pedir cantando sem cantar pela casa o "eia, eia" que vem depois de "Legalize it" ou "oummbai, oummbaii" quando eu passava pela cozinha.
Era "them want I, them want I", pelo jeito da faixa favorita dela.
E lá iamos nós ouvir reggae enquanto eu montava meus skates e ela tomava chimarrão.
Queria ter fumando maconha com ela, seria épico, e quintal para plantar não faltava.
Apesar de ser essa rastafari toda, ela nunca plantou nem fumou maconha e graças ao bom deus nunca teve dread, porque branco de dread é feio.
Plantava couve, cenouras, rabanetes e margaridas e tomava chimarrão mesmo e ironicamente, como descendente de alguma das Tribos de Israel a venerável minha avó tinha mais ligação com o Peter Tosh que ela mesma gostaria de admitir.
Quando eu reaparecia em casa voltando de Curitiba ela se fazia de surpresa e aproveitava o momento para me xingar em todas as línguas que conhecia de uma vez só e quando me perguntou porque eu ia tanto para Curitba eu poderia ter apenas respondido:
- Lá tem pista de skate.
Mas não, caipira como era, disse apenas:
- Curitiba tem hambúrguer e mostarda amarela.
Nunca entendi nem o cheiro, nem o gosto e muito menos a aparência de diarreia da mostarda marrom tão consumida por descendentes de alemães no Brasil, mas na primeira vez que um policial me deixou na rodoviária de Curitiba e me pagou um x-salada com ketchup e mostarda amarela o sabor da vitória e da liberdade fez destas o cheiro, gosto e aparência de mostarda amarela.
Minha vó não sabia o que era um hambúrguer então começou a achatar carne moída e fritar e nunca mais faltou mostarda amarela na geladeira.
Quantos "eu te amo" não ditos cabiam nos gestos mudos da minha avó?
Nunca saberia contar.
Quando eu passei no vestibular e disse que não queria morar em Curitiba mas em Florianópolis ela se tocou que eu queria ir, leia-se fugir, para mais longe.
E demoraria cada vez mais para retornar para debaixo da sombra dela.
Quando me despedi ela estava sentada do lado do fogão como sempre e me deu o mesmo beijo apressado e os dois tapinhas de mão que eram sempre mais um empurrão que um abraço.
Em dezoito anos convivendo eu só lembro de ver ela chorar três vezes: quando a minha mãe morreu, quando meu cachorro morreu e a primeira vez que voltei quando já estava morando em Florianópolis.
Aí ela mesma morreu seis meses depois, daquela clássica falência múltipla dos idosos que se vão de repente, mas com o castigo de uma lucidez que a impedia de esquecer certas passagens da vida.
Como ela mesma disse uma vez:
- Eu vivi demais para uma vida só.
E como viveu, merecia uma estátua em praça pública e acabou ganhando uma homenagem póstuma nos ensaios falidos do neto.
E eu tive de fugir para longe e então poder enxergar como o meu pequeno reino do tamanho de um grão de mostarda era grandioso.
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Anos e anos depois fazendo compras numa feira eu vi um saquinho de pistache e comprei para ver se era bom. E quando eu estava comendo me perguntei se a minha avó conheceu pistache enquanto estava viva.
Acho que não.
Mas Drum and Bass ela conheceu, foi a últuma tortura musical que eu mostrei para ela.
Ignorou completamente, velha idiota, decerto porque não encontrou forma de bater os pés no chão para acompanhar, ou talvez porque já tinha vivido demais, uma verdadeira Junglist.
Eu precisaria de um livro de mil páginas para contar a vida tristemente surreal que ela levou e preencher as lacunas do silêncio dela com as minhas próprias palavras, e a adaptação para o cinema levaria um Oscar de certeza.
Uma história atrapalhada de angústia e redenção de uma imigrante branca típica do interior, a doce-amarga vida de uma mulher forçada a viver uma vida despersonalizada e reescrita para ela contra a sua vontade.
A atriz principal teria de ser uma mistura de Meryl Streep com Dercy Gonçalves.
Saudades.
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Em tempo, alguns anos depois da morte do vô esquecido do meu amigo morreu uma das filhas, de morte morrida mesmo, acidente de carro. Viveu sempre linda, e sempre solteira. Conta a lenda que o cunhado dela contou no velório sobre como ela morreu linda como viveu, mais precisamente morreu formolsíssima, segundo sua palavras.
Realmente era uma família que via tudo com humor.
E por falar em parábolas, falamos um pouco sobre memórias e lembranças e então sobre a perda delas, vamos falar um pouco sobre o que realmente fica.
E claro, pistache.
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Cápsulas do tempo.
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Tive a minha primeira bursite, justo no cotovelo, talvez o Pensador de Rodin seja uma metáfora para a doença dos que perdem tempo pensando demais na vida.
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Os Smashing Pumpkins lançaram a segunda parte da trilogia Atum: A Rock Opera in Three Acts, pretensioso como sempre e incrível como nunca, como tudo deles, é pra quem pode e não pra quem quer.
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