Foto: Ayrton Cruz
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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16/02/2023
Judaísmo, cristianismo, islamismo, budismo, ateísmo, chinelismo, o que importa é o recado.
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Por falar em teimosia, essa característica inata de avós e adolescentes, o pistache é um grande campeão.
Estamos vivendo um período muito estranho da história da humanidade, e eu diria até perigoso, onde nós não fazemos a mínima ideia de onde, quando, como e por quem a nossa comida é produzida, um milagre diário e ignorado à nossa disposição em prateleiras de supermercado.
Ninguém nunca espera que a mostarda possa vir de uma árvore tão grande que no fim das contas nem árvore é, mas também ninguém sabe ou lembra como a natureza é cheia de coisas maravilhosamente estranhas, o tomate é fruto, o amendoim cresce embaixo da terra, você nunca viu um pé de abacaxi, abacate dá em árvore, gengibre é uma raiz, mamão vem em cachos igual banana, a canela é uma casca e você pode ser completamente viciado em pistache e não fazer a mínima ideia de onde ele vem ou como ele é na natureza.
E ainda por cima ele é um fruto também.
A árvore de pistache é uma árvore de crescimento lento e vida longa, amadurece por volta dos sete anos, chega a viver mais de cem anos e alcança seis a dez metros de altura. Como todas as dioicas uma árvore de pistache pode ter apenas flores masculinas ou flores femininas e, como era de se esperar, apenas as árvores femininas produzem frutos após serem polinizadas e fecundadas a partir do pólen das árvores masculinas através do vento.
As árvores de pistache masculinas chegam a ter o dobro da altura das femininas e um cultivo de pistache considerado ideal é um arranjo formado por uma árvore de pistache masculina no centro de cada nove árvores de pistache femininas e ao contrário de outras castanhas e nozes o pistache cresce em aglomerados parecidos com as uvas e a árvore então produz frutos em brotos criados a partir do ano anterior.
A árvore de pistache provavelmente originou-se na Ásia Central e pertence à família Anacardiaceae, uma família muito grande e abençoada e cheia de primos e pseudo-primos de frutos e pseudo-frutos que inclui a manga, o caju, o cajá, o umbu e a siriguela e gênero Pistacia inclui onze espécies, sendo Pistacia vera a árvore teimosa e relativamente temperamental, domesticada e cultivada em todo o mundo em áreas caracterizadas pelo clima quente e seco, e prospera onde houver um verão longo e quente e um inverno frio, alternância que quebra a dormência dos brotos.
Você encontra plantações em lugares e países como a Califórnia nos Estados Unidos, Afeganistão, Líbano, Síria, Irã, Índia, Turquia, sul da Europa e ainda outros países da Ásia e África, plantações com tendência para o rolamento alternativo produzindo muitos frutos em um ano e poucos frutos no ano seguinte.
Com pistache se faz de tudo, desde saladas salgadas, uma das minhas versões pessoais do molho pesto, tortas, bolos, sorvetes, palhas e o conhecido, grudento e maravilhoso ninho de pistache de origem síria.
Os doces árabes têm muito significado no nascimento das crianças, acredita-se que passar calda de açúcar na boca de um recém nascido a sua vida será guiada por palavras doces pois na cultura árabe tudo o que é dito por alguém pode se tornar uma profecia e um dia se virar contra você, um pensamento e filosofia que percorre boa parte do Velho Testamento da Bíblia, livro presente nas três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo.
O Gênesis na Bíblia é tão ou mais complexo quanto geopolítica no tempo da Guerra Fria até mesmo porque Deus (ele mesmo, o criador, o onipotente, onipresente e onisciente) não só é o síndico como ainda dá pitaco em tudo o tempo todo então não faz sentido tentar entender esta passagem inteira (nem os seguidores estão de acordo) mas é fato que assim como a mostarda o pistache também é citado na Bíblia e apesar de ser uma única passagem e não ser exatamente uma parábola é uma clara alusão ao ato de manifestar paz e tentar uma trégua, seja política, familiar ou religiosa ou (como é comum no velho testamento) todas ao mesmo tempo.
O Gênesis 43 registra a segunda visita dos irmãos de José ao Egito e o estudo bíblico desta passagem revela como José recepcionou seus irmãos sem que eles soubessem se tratar do jovem que eles venderam aos ismaelitas e no versículo 11 seu pai Israel deixa bem claro:
- Se assim é, que assim seja! Disse-lhes Israel, seu pai.
Tomai em vossas bagagens os melhores produtos da terra, e levai-os como presente a esse homem: um pouco de bálsamo, um pouco de mel, resina, ládano, nozes de pistácia e amêndoas.
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A despersonalização é um transtorno psicológico que ocorre quando um indivíduo tem a percepção sobre si mesmo alterada por incentivos, influências e motivações internas ou externas (ou ambas), causando sensações de irrealidade, apatia, amnésia, ausência, a impressão de que se está separado do corpo, perda de controle, ataques de pânico, depressão, ansiedade, sono, estresse, cansaço e uma lista infinita de somatizações e externalizações de sintomas.
A despersonalização do próximo é bem conhecida nas sociedades humanas de maneira em geral e tem sido bastante recorrente, seja na forma de aglutinação de grupos por características físicas e/ou étnicas e sociais visíveis (homem/mulher, branco/negro, hétero/gay, rico/pobre) ou através de características sociais sem rosto ou nem sempre identificáveis aparentemente e passam a ser vistas como barreiras, sejam elas ideológicas, filosóficas, étnicas, religiosas, políticas e mais ainda, a despersonalização forçada através da uniformização e a completa ausência de qualquer possibilidade de identificação pessoal como pura e simples alvos militares ou, em outras mais simples palavras ainda, inimigos.
Além da consequência de não identificar pessoas em grupos opostos a despersonalização do próximo gera dois efeitos colaterais diretos:
- A despersonalização auto-imposta ou auto-despersonalização forçada, quando você não é mais visto como um indivíduo e retirado do grupo ao qual você naturalmente pertence ou estigmatizado por pertencer a determinado grupo, até chegar num ponto onde você mesmo não se vê mais como tal (uma pessoa com personalidade e vontade e detentora de direitos individuais próprios).
- A imediata despersonalização das pessoas do grupo agora considerado oposto ao seu.
Quando você passa a se ver como alguém apenas enquanto estiver pertencente a um outro grupo, temos uma sociedade fragmentada, dividida e polarizada, perfil fácil de perceber em torcidas organizadas, protestos e até mesmo em beneficiados de programas sociais e ações afirmativas.
O primeiro estágio deste processo é a degeneração do sentimento obrigatório de pertencer a um determinado grupo social e a necessidade de estar incluído nele e das relações de poder consequentes, uma deturpação da nossa própria natureza coletiva.
Experimentos sociais podem provar as duas vias da despersonalização, como o conhecido Experimento do Presídio de Standord, onde os participantes foram divididos em dois grupos simulando um ambiente prisional (agentes carcereiros e presos) sendo que apenas os agentes possuíam identificação pelo nome, experimento que (graças a este processo), precisou ser encerrado semanas antes do prazo previsto devido à crueldade dos responsáveis pelos presos e a mais completa submissão de boa parte destes.
Outros exemplos sociais mostram que basta um uniforme, uma cor diferente no uniforme ou apenas um título no crachá de identificação acima do nome para o processo de despersonalização começar automaticamente.
O judaísmo conheceu exemplos clássicos e até bem recentes de despersonalização:
- Os judeus portugueses convertidos ao cristianismo na era das grandes navegações.
- Os judeus europeus nas décadas de 20 a 40 que vieram para o Brasil como escravos, tiveram seus nomes trocados sendo também convertidos forçadamente a outras religiões (escravos estes não reconhecidos nem pelo governo brasileiro e nem pelos seus países de origem).
- Os conhecidos e bem documentados números que os judeus tinham tatuados em seus braços pelos nazistas nos campos de concentração durante a segunda guerra.
O cães possuem um processo parecido de despersonalização do próximo, embora não necessite da validação de um grupo, cujo instinto é identificado como agressividade de barreira.
Você já viu a cena, dois cães completamente raivosos latindo e rosnando um para o outro atrás de uma porta de vidro ou portão de uma casa e quando você abre a porta ou o portão eles imediatamente cessam a sugestão de que atacariam e passam a abanar o rabo e cheirar o cu um do outro como se nada houvesse acontecido.
Se você fechar a porta ou o portão o processo recomeça, eles estão completamente bem se nada os separa mas no minuto em que algo é colocado entre eles e os divide a agressividade se faz parte, um instinto de proteção territorial e de recursos.
Este processo acontece até mesmo se for uma pessoa ao invés de um cão do outro lado, afinal é da natureza canina primeiro proteger, depois se enturmar.
Note então outras três grandes características caninas que provam a nossa dívida moral para com eles:
Uma, um cão é um animal social, que abriu mão da sua territorialidade individual para andar em grupos, clãs e famílias, como os lobos.
Duas, ele abre mão dessa sociabilidade no exato momento em que ele sente que precisa defender o seu território. O seu, não o dele.
Três, ele transferiu a sua socioabilidade e territorialidade para você, para ficar junto de você.
Cães são ou não são sensacionais?
Por outro lado é fato conhecido também que, entre humanos, quando você conhece pessoalmente alguém de outra cultura, religião e nacionalidade ou apenas outro estilo de vida diferente do seu o mesmo sentimento gregário e coletivo faz com que nos identifiquemos com esta pessoa pela busca das características em comum, apesar das diferenças aparecerem primeiro, ou justamente por isto.
No documentário/experimento Sacrifice o ilusionista e escritor Derren Brown mostra como é possível até mesmo você sacrificar a sua vida no lugar de uma pessoa que antes você não se importava ou até mesmo nutria ódio por ela, através de um exame falso de origem genealógica onde ele convence um norte-americano com tendências racistas de que ele tem 1% de origem mexicana dentro de si.
A partir disto ele é jogado em uma situação de conflito entre ficar do lado de motoqueiros supremacistas armados ou se jogar na frente de um mexicano rendido por eles.
Como Derren cita no final do experimento:
- As histórias que contamos para nós mesmos ditam o lado pelo qual nós lutamos.
Uma história nos diz para protegermos nosso grupo e nos resguardar das ameaças de fora, mesmo às custas dos desafortunados, outra história nos diz para protegermos os desafortunados, mesmo às custas da estabilidade geral.
Cada lado está convencido de que o outro é louco ou mau, mas é justamente no diálogo entre os lados que encontramos a verdade e a humanidade floresce.
Podemos proteger nossos grupos e preservar a compaixão.
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Eu entrei no inverno de 2020, em plena pandemia, lendo uma mini-biografia do Maomé e em seguida uma edição comentada do Alcorão e como era de se esperar, o queixo caiu.
Alcorão não tem frase motivacional, mas tem grandes lições.
Já tentei várias vezes escrever e relatar sobre mas é simplesmente impossível, há anos eu não lia nada tão surreal e tão revelador ao mesmo tempo de uma era e da condição humana, ler religiões (principalmente as monoteístas) é um aprendizado enorme sobre o ego e poder, relações interpessoais e psicologia para dizer o mínimo.
Mas a minha maior dificuldade em escrever sobre religiões é por sofrer digamos da Síndrome de Monty Phython, eu amo religiões e eu respeito religiões, mas as piadas me atropelam constantemente.
E sabemos como é um perigo zoar com Maomé e os muçulmanos, eles praticam o cancelamento raiz (pelo menos os mais empolgados), chamado decapitamento, e por ser ateu eu também não tenho lugar de fatwa.
A mesma dificuldade em escrever sobre religiões eu tenho a respeito da minha vó, ela era um enigma, absolute mad grandma.
Toda vez que eu penso nela cada vez mais percebo como ela era uma pessoa genial, não era de falar muito e se comunicava mais por gestos e muitos desses gestos eram tão sutis, tão curtos, que só muitos anos depois dela ter morrido eu comecei a entender, como se a minha vida fosse um constante sítio arqueológico onde cada buraco na memória cavado mudava toda a história anterior.
Mas quando falava, mudava o ar ao redor dela.
Ia do silêncio à frases soltas sem avisar, algumas ironias (umas amargas, outras doces), mas sempre calava todos.
Conversava em português, falava sozinha e brigava em alemão, se assustava e xingava em italiano, assim era ela. Escreveu seus próprios mandamentos, construiu a própria arca e, santa que não necessariamente era, canonizou a si mesma.
Canonizar é o ato de reconhecer e declarar santo após a morte aquele que em vida demonstrou compaixão e forças sobre-humanos, e passam a ser referência de conduta para os demais.
De conduta a velha manjava, pois assim como nos tempos de Maomé minha vó me criou na base do silêncio e da espada. Não era bem uma espada, mas um chinelo tão afiado que faria o Exército de Saladino recuar de onde estivesse e quase me fez criar uma nova religião monoteísta, o Chinelismo da Grande e Honorável Minha Vó.
O silêncio dela falava muito, e quando eu não ouvia a chinela cantava.
Não tinha como fugir da surata dela, Allahuh Aiminhabundah.
Eu não conheci o meu avô então adotei na adolescência o Gabriel Garcia Márquez para esse papel, o primeiro escritor por quem me apaixonei e de longe o mais sensível em saber expressar a magia e a beleza das coisas pequenas, tal qual um vô com seu neto no colo.
Contar boas histórias é um ato de aprendizado constante, olhar para o passado e não fechar os olhos para o presente é jogar uma luz para o futuro e como a maravilhosa Phoebe Waller-Bridge disse ser a sua frase favorita em um vídeo do YouTube:
- We write to taste life twice.
Virou minha frase favorita também.
Mas escrever sobre religiões monoteístas e avós a vontade é tão grande quanto a dificuldade.
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Mas o Fefo, pessoa na qual já falamos, é mais esperto, resolveu ler e escrever sobre Budismo Tibetano, e também compôs uma música inspirado no tema.
O Budismo tem uma característica inata e interessante, é muito fácil fazer piadas e zoar com com ele, mas quando você começa a entender, a piada passa a ser você.
Me parece ser um longo caminho até o budismo levar você a sério, religião que não depende da existência de um deus para existir e traz consigo valores individuais importantes para a vida de cada um, muitos destes já perdidos aqui no ocidente.
Também traz seu próprio código de conduta e referência e aliás, outra coisa interessantíssima sobre as religiões monoteístas e as filosofias orientais é o fato delas compartilharem muitas vezes conceitos parecidos ou até mesmo idênticos:
O Cânon cristão, o Carisma islâmico, o Tsadic judaico, o Dharma hindu e o Bodhisattva budista, literalmente tornar-se Buda através do Kannon, a representação para a compaixão.
Pois é, do Cânon ao Kannon.
O termo cânon deriva do grego kanon e significa "regra", e daí via latim e francês antigo para o inglês e então na língua portuguesa e possui vários usos e aplicações.
Um cânone se refere a um conjunto de regras ou leis oficiais, autênticas ou aprovadas, particularmente eclesiásticas ou grupo de obras literárias ou artísticas oficiais como a literatura de um determinado autor, de um determinado gênero ou de um determinado grupo de textos bíblicos religiosos ou similarmente, ou um conjunto de regras, princípios ou padrões aceitos como axiomáticos e universalmente obrigatórios em uma religião, campo de estudo ou arte.
Um cânone também é é um hino estruturado usado em vários serviços religiosos ortodoxos e composto por nove odes, com base nos cânticos bíblicos. A maioria deles é encontrada no Antigo Testamento, mas a ode final é retirada do Magnificat (a Canção de Maria ) e do Cântico de Zacarias do Novo Testamento.
No Direito Canônico é o conjunto de normas (cânones) que orientam a disciplina eclesiástica, definem a autoridade administrativa, os direitos e deveres dos fiéis católicos, os sacramentos e possíveis de reforçar pela transgressão das normas (leis próprias da igreja).
Na ficção um Cânone é material sequencial e influente aceito como sendo autenticamente produzido por um autor ou um autor designado ou conjunto de autores ou de obras que são considerados exemplares em determinada época ou local.
No budismo existe até representação de um Kannon armado (ninguém disse que compaixão seria sinônimo de passar a mão na cabeça e se é com espadas ou chinelos eu teria de pesquisar mais) e nas religiões politeístas como a Mitologia Grega ou o nosso Candomblé cada Deus ou Semi-Deus ou Orixá tem a sua própria jornada heroica rumo à iluminação, sejam pelas paixões, pelos erros ou pela descoberta da compaixão.
Por falar nisso, pouco antes da minha vó morrer mostrei para ela um livro de Candomblé que estava lendo na época e ela não gostou nem um pouco, não por medo ou preconceito, mas por lembrar do nosso vizinho duas quadras abaixo e praticante de Umbanda, e barulhento o suficiente para sempre ser ouvido duas quadras acima.
Expliquei para ela a diferença, a inexistência de bem versus mal e do diabo no Candomblé, o papel de Exu como apenas um mensageiro das vontades humanas e a relação obrigatória dos Orixás com a mata virgem, e ela ficou feliz.
Forçada ao catolicismo, minha vó rejeitava ativamente esta frescura cristã de diabo e a pobre visão maniqueísta da vida como ninguém, fazia o dobro de pão nas sextas porque aos sábados não levantava nem para aumentar o volume da televisão, chamava a gente.
E nos domingos só acordava cedo para fazer xixi e fazer café, e ia na igreja só se fosse velório ou missa de sétimo dia e ainda ia reclamando.
Não gostava de me ver arrumado e de cabelo lambido, cabelo que ela mesma lambia e arrumava (mais vó e anti-vó ao mesmo tempo impossível) e terminou seus dias gostando de reggae, capoeira e sabendo um pouco sobre macumba.
E quando queria comer amendoim, pedia para eu sentar do lado dela e descascar um por um e foi esta lembrança que me veio quando abri uma casquinha de pistache pela primeira vez na vida já adulto e me perguntei se ela havia comido um.
Sei pouco sobre os avós do Fefo, mas sei que o vô dele também dava uns reais para ajudar ele nas escapadas dele, e ajudar um neto a fugir é sinônimo de compaixão.
Compaixão para mim é sobre pequenos gestos, pequenos vínculos, pequenos e grandes segredos que, repito, só avós entendem.
Mas sobre Kannon, a compaixão em si, o texto do Fefo é uma aula, e ele que muitas vezes já quis pegar pelo pescoço me fez ficar com um nó na garganta.
Escreveu literalmente uma chinelada budista, então vou compartilhar aqui com vocês também.
No dia 15 de Agosto de 2020 a minha vódrasta informal Mercedes Barcha Bardo, viúva do Gabriel Garcia Márquez, faleceu e eu soube apenas no dia um pouco antes de ir dormir.
Que ela se junte com o Gabo em uma versão moderna da eterna Macondo, um paraíso só de avós com seus televisores no volume máximo, comendo doces proibidos pelo médico e para onde todos os netos irão um dia encontrá-los.
E no dia seguinte acordei com a cabeça cheia de pensamentos mal anotados, as saudades de sempre, e o uma postagem no Facebook com o texto do Fefo.
Eu tenho uma visão absolutamente egoísta de que avós deveriam viver pra sempre, ou pelo menos morrer depois de nós. Que nos peguem no colo antes e depois de entendermos o ciclo da vida ou que apenas nos indiquem o caminho e vão embora igual o Mestre dos Magos.
Minha vó foi embora cedo demais, não me viu parar de ouvir música barulhenta (nem nunca veria) e nem aprender a fazer pão (faço todos pensando nela).
E os avós dos outros para mim são como cães de rua, podem ser os mais fedidos, os mais rabugentos e até morder, se der bobeira eu abraço.
Santificados sejam todos os avós, agora é com você.
Então segue o texto dele.
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Em momentos diferentes escrevi este texto e este som mas em ambos estava com a mente ocupada pelo mesmo tema.
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FOTOGRAFIA, KANNON E A IMPERMANÊNCIA.
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O responsável pelo nome da empresa Canon foi o construtor do protótipo da primeira câmera japonesa de 35mm com obturador de plano focal, o budista Goro Yoshida.
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Por trabalhar com equipamentos eletrônicos, sem nenhuma pretensão, abriu uma câmera fotográfica importada e ficou indignado quando descobriu que não havia absolutamente nada de especial dentro dela.
Todos os materiais para fabricação de uma câmera eram acessíveis, não faria sentido serem tão caras.
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Em 1934, após essa epifania, fundou a Precision Optical Industry Co. Ltd. Junto com seu cunhado e mais um chapa.
Depois de meses de trabalho alcançaram seu objetivo e exibiram os protótipos nas revistas da área.
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Como as publicações eram internacionais, o nome precisa ser inteligível, então batizaram a câmera criada de Kwanon, uma versão transliterada para o inglês do nome de bodhisattva Kannon.
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Yoshida era devoto de Kannon e reza a lenda que durante sua vida passou por uma provação muito dura e orou por ajuda, entendeu que Kannon viu seu suplicio e lhe atendeu com uma graça.
Outra versão, a minha favorita, diz que a graça atendida foi a construção da própria câmera.
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Kannon é uma divindade ligada a compaixão. O nome chinês para essa divindade é Guanyin, que seria algo como "Aquele que vê os sons do mundo". O som neste caso são os suplícios dos que precisam de socorro, dos que pedem a sua ajuda.
É uma divindade que vê a necessidade do ser mundano, que enxerga a natureza humana do não iluminado. Geralmente é para ela que os milagres são pedidos, por sua capacidade de VER, a capacidade do observador profundo.
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Kan é percepção, consciência, discernimento.
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Kan é ver a vida do universo.
É ver com a consciência e a percepção da ausência de unidade, o entendimento que cada um de nós é a manifestação de um mesmo todo.
É saber que a cada foto que tiramos estamos também nos fotografando.
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O nome de Kannon em sânscrito é Avalokiteśvara e significa algo como "o senhor que olha de cima". É uma divindade que pode ser masculina ou feminina, que pode ser representada com dois ou muitos braços, mas que sempre está ligada com a sua capacidade de ver até o que se deveria ouvir.
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Nunca entendi de câmeras, embora ache o desenho das máquinas dos anos 90 hipnotizantes, mas acredito que não haveria um nome mais adequado para um equipamento que explore nosso sentido da visão.
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Uma fotografia nos permite ver a realidade com certo distanciamento emocional, a imagem em sua perspectiva de realidade, sua versão mais verdadeira e simples, da forma que o zen nos recomenda.
Podemos observar a planta como uma planta, que pode ser ou não bela aos olhos do observador.
Uma casa como uma casa, que pode ou não nos parecer convidativa e confortável.
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Repetidas fotografias podem nos mostrar a degradação da planta, ou da casa, ao longo do tempo, o que nos permite enxergar de uma forma muito dura a velhice como a velhice.
Esta como o atestado da impermanência, como incapacidade de controlar o fluxo da vida, como iminência da morte.
Entendimento amplo que não se limita ao observado, mas que novamente nos remete ao uso da fotografia.
Ao outro lado da máquina.
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Ao mesmo tempo essa fotografia nos permite ver muito além do existente para ser visto em papel impresso.
Vemos em nossa mente o cuidado e carinho que tivemos com aquela orquídea, vemos nossa infância naquela casa e vemos a velhice como o a cicatriz de uma vida bem aventurada.
Vida repleta de bons momentos.
Aqueles momentos que amenizaram a consciência do Dukkha.
Dukkha (o sofrimento, a real natureza de toda a existência), originado do simples fato de existir, escolher e amar.
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Recentemente coloquei uma foto dos meus avós em um porta-retratos. Fiz para que todos lembrássemos de como foram. Embora vivos não são os mesmos.
O cansaço e a doença de seus corpos são parte do caminho que precisamos percorrer juntos.
Uma fotografia de tempos melhores nos ajuda a perceber que assim como os bons momentos, os maus momentos também são impermanentes.
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Dispor de um recurso fotográfico em meu celular permite o registro de pequenos instantes de felicidade durante nossa convivência. Instantes que passaram a ser cada vez mais curtos e que precisam de cada vez mais esforços para que ocorram. Mas que agora são ainda mais sinceros e valorosos.
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Kannon é compaixão.
Compaixão é amor.
Esse é o sentimento que me preenche quando vejo uma dessas fotografias e espero tirar muitas até que eles não estejam mais aqui.
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Nesta pesquisa descobri algo ainda mais sensível sobre a visão do Goro Yoshida sobre a fotografia.
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A lente que acompanhava o protótipo foi nomeada de Kasyapa, uma abreviação de Mahakasyapa, um discípulo dos principais discípulos de Guatama Buda, nosso amigo Sidarta, e um dos maiores contribuintes para o Dharma.
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O nome dele em sânscrito significa “Bebedor de Luz”.
Há uma lenda que quando ele nasceu um clarão dourado tomou conta do ambiente onde houve o parto. Logo depois toda essa luz foi absorvida pela sua boca e desde então passou a ter um semblante dourado.
Novamente muito adequado para uma lente.
E foi assim, a partir deste protótipo, que a Precision Optical Industry Co. Ltd. se tornou Canon e se profissionalizou na produção de máquinas fotográficas. Yoshida deixou a empresa antes que virasse tudo uma linha de produção.
Alegou que o caminho que a empresa tomava não fazia parte de suas aspirações.⠀⠀
Talvez precisasse apenas de algumas fotos.
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A despersonalização é bem conhecida dos judeus como já citamos, tão conhecida que na sua língua de origem a vida e a verdade e a morte e a mentira são a mesma palavra com apenas a adição ou subtração de apenas uma letra.
E ela se escreve em barro.
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Cápsulas do tempo.
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Cientistas criaram um sistema elétrico fazendo uma planta manejar um facão.
Não vejo a hora deles criarem alface com perna e vegetariano ter de aprender a caçar pra comer.
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Outros cientistas criaram uma barata ciborgue.
Uma barata ciborgue.
Uma barata.
Ciborgue.
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O filme Avatar: The Way of Water já arrecadou 2.177.913.346 bilhões de dólares, chegando no quarto lugar das dez maiores bilheterias de todos os tempos, lista que incluiu o primeiro Avatar ocupando o primeiro lugar.
Graças a este sucesso comercial o mundo vai ter ainda mais três péssimas notícias pela frente: Avatar 3 em 2024, Avatar 4 em 2026 e Avatar 5 em 2028.
E possivelmente Avatar 6 e Avatar 7 lá por 2030.
A melhor lembrança que eu tenho de ter visto Avatar no cinema foi uma senhora do meu lado que não se decidia se colocava os óculos 3D por cima ou por baixo dos próprios óculos, se o mundo acabar antes de todas estas continuações nós é que estaremos no lucro.
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