Foto: Ayrton Cruz
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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19/04/2023
PLUTO
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Três histórias sobre lealdade, três vira-latas para provar e claro, um cachorro que viveu noventa e um anos.
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Não existem provas da existência e da vida do poeta grego Homero, muitos pesquisadores notam que em seus poemas são relatados eventos de séculos de história narrados oralmente de geração em geração e atribuídos a ele, tornando-se então uma personificação coletiva de toda a memória grega antiga.
Segundo as versões mais comuns aceitas popularmente ele teria nascido na Cidade de Esmirna na costa da Turquia ou em alguma ilha do mar Egeu e vivido no século VIII antes de Cristo, mas mesmo a sua suposta origem é tão controversa que oito cidades diferentes disputam a honra de terem sido a terra natal do poeta.
Mesmo a data em que teria vivido não é consenso e parece provar mais a sua inexistência e afirmar a teoria de personagem do consciente coletivo grego.
Segundo o historiador Heródoto o poeta Homero viveu 400 anos antes de seu próprio tempo, em torno de 850 a.C., mas outras fontes registram datas muito mais próximas da suposta época da também fictícia Guerra de Troia, entre 1194 e 1184 a.C., período em que se passa o seu poema mais famoso: A Odisseia.
A Odisseia narra a história de Ulisses (ou Odisseu) que, depois de passar 10 anos lutando na Guerra de Troia leva outros tantos ainda para voltar para a sua terra natal, e durante a sua ausência alguns pretendentes (do grego fura-zoyokos, fura-zóios em português) invadiram sua casa na esperança de se casarem com sua esposa Penélope.
Ao retornar e saber deste plano Ulisses disfarça-se de mendigo para se aproximar e matar quem tomou a sua casa e passando por fora encontra seu cão Argos deitado, infestado de piolhos, velho e cansado, diferente do cão forte, veloz e ótimo caçador da raça Galgo adotado vinte anos atrás.
Argos reconhece Ulisses automaticamente mas mal tem força para mexer seus ouvidos e abanar o rabo e sem conseguir se levantar para cumprimentar, e assim que Ulisses passa e entra em sua sala, Argos morre, como se precisasse desta certeza na vida para poder se despedir da mesma, a simplicidade da relação de ambos permitiu a sua reunião em ser imediata e sincera.
Ao contrário de seu relacionamento com a esposa Penélope, Ulisses não precisa se preocupar em como os vinte anos de ausência afetaram seu relacionamento com Argos, muito mais simples e mais fácil de continuar do que qualquer relação com sua família ou amigos aguardando o seu retorno.
Ulisses percebeu o forte elo formado com o animal, capaz de farejar emoções as quais muitos humanos sequer podem detectar e reconheceu nele o mais próximo possível do amor incondicional.
Quando Ulisses passou por Argos deixou cair uma lágrima, lágrima não derramada em nenhuma de suas inúmeras batalhas e a única lágrima desde que partiu, mesmo em sua jornada tendo combatido na Guerra de Tróia, enfrentado o gigante Ciclope, vencendo os feitiços da maga Circe e resistido ao canto das sereias.
A manifestação silenciosa de Argos facilitou a entrada de Ulisses em sua casa pois ninguém o reconheceu e poucos se mostraram misericordiosos com o mendigo, libertando-se do disfarce e matando todos os indignos de terem títulos...ou vida.
A cena do reencontro entre homem e cão inspirou em Homero alguns dos mais belos versos de toda a sua obra:
"Em dias passados, os mancebos tinham levado o cão à caça, para perseguir cabras selvagens, veados e lebres, mas agora jazia e ninguém lhe ligava, pois o dono estava ausente.
Esquecido diante do portal do palácio Argos permanecia a vigiar, quase cego, coberto de sarna e pulgas.
Reconheceu Ulisses no homem que se aproximava e, movendo o rabo, baixou as duas orelhas.
Faltavam-lhe forças para correr em direção ao dono.
Ulisses o viu, voltou a cabeça e, tocado por sua aparência, verteu uma lágrima.
Ao comentar a aparência dilapidada do cão com Eumeu, este último respondeu que há vinte anos nenhum cão podia vencer Argos, ou farejar melhor, mas na ausência de seu senhor envelheceu desamparado.
Não se sabe ao certo a raça de Argos, mas a julgar pelo período narrado provavelmente trata-se de um Molosso, cão feroz e ótimo guardião e caçador, originando séculos depois os Mastiff e os São-Bernardo na Inglaterra e os Cane Corso na Itália.
Quando os dois entraram no prédio, Argos suspirou pela última vez e morreu em silêncio, feliz em ver seu senhor novamente."
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Por sua vez o também grego e filósofo Diógenes de Sinope não só existiu como foi ignorado, provocado e então celebrado, nascido, vivido e enterrado, comentado, narrado e lembrado.
Nasceu por volta do ano de 412 a.C. na Cidade de Sinope, colônia grega onde hoje é o norte da Turquia, e morreu entre 327 e 323 a.C. aos 89 anos de idade, na Cidade de Corinto.
E viveu como um cão.
Diógenes de Sinope (ou Diógenes, o Cínico) foi o maior expoente do Cinismo (do grego kynikos, igual um cão), uma versão um tanto mais radical do estoicismo onde o propósito da vida é viver na virtude de acordo com a natureza, sem as posses e conquistas humanas, cuja expressão "cínico" era usada com orgulho por seus seguidores e com escárnio por seus detratores, uma filosofia de busca na simplicidade terminando por ser sinônimo de descrença na humanidade, como os cínicos são vistos até hoje.
Diógenes era visto perambulando com uma lanterna acesa em plena luz do dia, com a qual procurava "um homem honesto" e acreditava que os humanos levavam uma vida artificial e hipócrita e deveriam voltar a aprender a viver como os cães, capazes de fazer xixi e cocô na rua sem constrangimento, sem reclamar da comida disponível e dormindo com prazer onde fosse possível e levando a vida no presente, abstraídos de ego e posses, sabendo por instinto reconhecer quem é amigo de verdade e reagindo com igual honestidade.
Em suas palavras:
- Cães e filósofos fazem as maiores bondades e recebem as menores recompensas.
Conta-se que o Rei da Macedônia Alexandre Magno (ou Alexandre, o Grande) ficou sabendo de sua existência e o procurou quando ambos estavam na Cidade de Atenas na Grécia para saber se ele precisava ou gostaria de algo.
Como Diógenes se recusou a ir até Alexandre, o rei foi até ele.
Alexandre se colocou na frente do filósofo e Diógenes não se moveu.
Os soldados de Alexandre se assombraram com a falta de respeito e perguntaram se ele sabia com quem estava falando.
Diógenes respondeu:
– Se for um homem mau, nada posso fazer. Se for um homem bom, nada tenho a temer
Alexandre tomou a palavra e, com a recém conquistada Atenas em suas mãos, disse:
– Como senhor dessa terra posso realizar qualquer desejo seu então diga-me Diogenes, você deseja algo?
Sem hesitar, Diógenes respondeu:
- Sim, podes sair da frente do meu sol, apenas não tire de mim o que não pode me dar.
Alexandre o Grande se retirou e continuou com sua expansão militar mas deu ordens expressas para que a cidade não fosse pilhada.
Impressionado com o desprezo do filósofo, o conquistador comentou:
- Se eu não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes.
Diógenes tem uma coleção de bons e ácidos momentos dignos de comédia stand up ou até mesmo de debate político. Por exemplo, quando reclamaram que ele comia como um cão, ele respondeu:
- E vocês não param de latir.
Quando foi xingado de cachorro por um morador da cidade (como se fosse
de fato um xingamento) Diógenes mijou nele. Quando o morador se irritou, Diógenes comentou:
- Se eu sou um cachorro, por que a surpresa?
Quando foi expulso pelos moradores da cidade de Sinop, Diógenes retrucou:
- E eu condeno vocês a ficar nesta cidade.
Quando foi vendido como escravo e um soldado perguntou qual trabalho ele sabia fazer melhor, Diógenes não perdeu tempo:
- Senhor de escravos.
Viver como um cão pode ser sinônimo de levar uma vida heroica e o Cinismo também pode ser visto como a filosofia da gratidão pois foi também graças a um cachorro, o bravo Péritas, que Alexandre O Grande sobreviveu ao atropelamento de um elefante hindu em uma batalha e por consequência das suas vitórias o seu legado originou o período conhecido como Helenismo, quando a cultura grega se espalhou pelo Império Romano e cuja filosofia deu origem aos movimentos e correntes do Ceticismo (a arte da dúvida como força motriz da evolução do espírito humano), do Epicurismo (a noção de que a verdade e a felicidade estão ao alcance dos homens pelos seus próprios meios) e também dos já citados Estoicismo e Cinismo.
O ocidente, aqui onde nós nascemos e vivemos, é o resultado da soma da Filosofia Grega, do Direito Romano e a da moral Judaico-Cristã e na minha opinião estas quatro filosofias são a base de tudo: duvidar, buscar, renegar e agradecer.
Se somos o que somos e nos tornamos como tal, agradeça a um cínico.
Diógenes viveu como nasceu e morreu como viveu, e em sua lápide foi escrita a seguinte frase:
“O próprio bronze envelhece com o tempo mas a tua gloria, Diógenes, nem toda a eternidade destruirá; pois apenas tu ensinaste aos mortais a lição da autossuficiência na vida e a maneira más fácil de viver.”
Talvez o cinismo tenha adquirido má fama não por ser como é, mas por mostrar a sociedade como ela é.
Diógenes não era um cachorro, mas definitivamente era um vira-lata.
E antes de tudo e de todos, era leal consigo mesmo.
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Não tão antigo e nem um pouco grego, a história do cão Hachiko é tão mitológica e maravilhosa quanto, Hachiko nasceu em 10 de Novembro de 1923 em uma fazenda perto da cidade de Odate na província de Akita, no Japão.
Em 1924 um professor da Universidade Imperial de Tóquio, Hidesaburo Ueno, trouxe o cão da raça Akita Inu para morar em Shibuya como seu animal de estimação.
Hachiko se habituou a encontrar Ueno na estação de trem de Shibuya todos os dias no fim de tarde após sua volta para casa até o dia 21 de maio de 1925, quando Ueno sofreu um acidente vascular cerebral durante o trabalho e faleceu.
Até a sua própria morte quase dez anos depois, em 8 de Março de 1934, Hachiko voltaria à estação de Shibuya todos os dias para esperar o retorno de Ueno.
A figura permanente do cão à espera de seu dono atraiu a atenção das pessoas e muitas já haviam visto Hachiko e o professor Ueno indo e vindo diariamente no passado e percebendo a sua situação passaram a trazer petiscos e comida para aliviar sua vigília.
Continuou dormindo perto da estação e fugiu de todas as tentativas de levar ele para outra vizinhança, outra casa ou abrigo.
Quando morreu por uma mistura de câncer terminal e infecção foi declarado um dia de luto e encontraram em seu estômago quatro espetos de Yakitori, o famoso franguinho no espeto de rua, e como não foram esses espetos que causaram a sua morte podemos razoavelmente concluir que Hachiko tinha pelo menos apetite de vira-lata.
Após a sua morte parte do seu corpo foi cremado e velado e outra parte foi preservado e empalhado e está em exposição permanente no Museu Nacional de Ciências do Japão.
Seja pelo esmero japonês, seja pela postura do cão, a sua figura conservada ficou agradavelmente viva e real, figura esta que se tornou um símbolo da lealdade no país virando tema de selos, bandeiras, músicas e poemas e também uma estátua em sua homenagem em frente à estação onde escolheu passar a vida toda esperando pelo seu dono.
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É fato, vira-latas são deuses que fugiram do Olimpo.
E imprevisíveis como a vida.
O primeiro cão se aproximou dos humanos por volta de trinta mil anos atrás e cientificamente ou arqueologicamente comprovado ou não podemos ter uma única certeza, era um vira-lata.
A curiosidade, a fome, a vontade de se aproximar, a facilidade em se enturmar e os acordos não verbais, está fora de discussão, o primeiro cão era um vira-lata.
Existem estudos mostrando que os primeiros cães se separaram dos lobos antes mesmos de se aproximarem da espécie humana, indicando paradoxalmente que talvez, apenas talvez, eles tenham nos domesticado nos ensinando a dar comida em troca de carinho e não o contrário.
Mas tudo bem, nós também aprendemos a ludibriar eles fingindo oferecer comida para poder fazer carinho neles e... meu deus, talvez isto tenha sido planejado por eles também.
Vira-latas são de fato paradoxais, como na tirinha "My Dog: The Paradox" do cartunista americano Matthew Inman:
- Não possuem medo de automóveis, caminhões de lixo ou aviões, mas ficam apavorados com um secador de cabelos.
- Não possuem medo de nenhum outro animal a não ser encarar um gato nos olhos.
Não possuem interesse em ficar limpos, a não ser o próprio testículo.
- Latem ferozmente para pessoas que gostamos e ficam alegremente enloquecidos perto de pessoas que queremos evitar.
- Você chuta ele sem querer e ele se aproxima e pede desculpas para você. Comem de tudo o que não pode ser comido, mas rejeita a salada que você tanto pensou que ele adoraria.
- Têm medo de banho e fogos de artifício e principalmente, de ficar sozinho. Se você sai de casa e volta quatro minutos ou quatro horas depois, a reação deles é a mesma, saltos de amor e alegria.
- São os seus melhores amigos, e morrem sem nunca saber o seu nome.
- Quando chegam na adolescência, morrem de velhice, depois de viver uma vida onde mastigou, lambeu e se esfregou em tudo o que há (e não há) neste mundo que possa ser mastigado, lambido e esfregado.
- Talvez seja por isso que amamos vira-latas, suas vidas não são duradouras, lógicas ou deliberadas mas um explosivo paradoxo composto de pele, dentes e entusiasmo.
- E amor genuíno.
Vira-latas ensinam sobre muita coisa: amizade, lealdade, coragem, companheirismo, gratidão, resiliência e perseverança e mais uma lista infinita de lições.
E eu tive centenas delas desde quando ele apareceu nas mãos da minha madrinha num final de tarde poucas semanas depois da morte da minha mãe, um vira-lata negro com três patas brancas, pequeno de olhos pequenos e aquele olhar medroso típico de qualquer filhote quando você ergue ele acima de dez centímetros do chão.
E como eu erguia.
De tanto erguer ele se tornou o mais bravo e destemido dos vira-latas, quanto mais alto eu erguia mais rápido o rabo dele abanava.
Não tinha medo de nada, nem de si mesmo, corria como uma motocicleta e latia como um escapamento furado e durante 13 anos da minha vida esse desgraçadinho foi o meu melhor amigo, só quem teve um cachorro na infância entende a sintonia entre uma criança e um vira-lata fedorento.
Nossa rotina de final de tarde basicamente se resumia no seguinte: Eu xingava quem passava na rua e se a pessoa tivesse a audácia de xingar de volta o Pluto ia lá e fazia a parte dele, xingava em caninês e mordia direto na canela.
Não tenho lembranças de algum desafeto ter escapado ileso, ninguém mandava passar na minha rua sem fazer sinal de reverência para a nossa humilde residência.
Pluto era sangue nos olhos, alma de caçador e coração de vigia e não deixava escapar ninguém: carteiro, mórmon, vendedor de enciclopédia, mendigo. A única exceção na lista de sanções da nossa ONU particular era sorveteiro, mesmo assim com ressalvas.
Mas milico de farda indo pro quartel quatro quadras abaixo?
Xingão por extenso e mordida dupla.
Se dependesse de nós a ditadura militar teria terminado cinco anos antes mas tínhamos coisa muito mais importante para fazer da vida como uivar e roncar juntos, assistir desenho e abrir o berreiro quando o joelho de um ralava mais que o esperado.
Quando eu decidia ignorar ele e fazer essas coisas de seres humanos como estudar ou ler gibi, logo se frustrava e partia para o que eu chamaria hoje de ataque preventivo ou tiro de aviso.
Chegava próximo de mim, me olhando nos olhos como quem vem desafiar e roubar a sua caça, e pegava com a pontinha dos dentes o que fosse possível: o cadarço do meu tênis, minha meia no chão, meu chinelo, meu gibi.
Se conseguia abocanhar e escapar com algo na boca corria galopando como se a casa estivesse desabando e seguia até o quintal tentar enterrar a sua conquista.
Então era a minha vez de ir atrás tentar recuperar.
Se já estava enterrado ou parcialmente enterrado ele não fugia, desenterrava comigo como se aquele ato de estupidez canina tivesse sido uma ideia nossa e o seu rabo abanava como se quisesse se soltar do corpo e sair voando.
Hoje não tenho dúvidas: era um gesto de amor, quem ama, enterra.
Pode parecer meio mórbido pensar assim (afinal antes de ser enterrada a minha mãe quase foi capa do disco do Iron Maiden) mas se assim somos nós humanos quando velamos quem amamos, assim são os cães quando enterram um pedacinho de alguma coisa que nos pertence para chamar nossa atenção.
Descíamos o gramado perto da ponte da cidade em cima de um papelão, eu sentava, ele sentava entre as minhas pernas e lá íamos nós e como a gente se fodia meu deus, eu não sabia frear, ele muito menos, no final da descida eu saía de cima do papelão e ele saía junto confiando em mim.
Eu caía por cima dele, eu chorava, ele gritava, subíamos chorando e gritando, eu acariciava ele, ele me lambia, eu sentava no papelão descrente que ele viria junto de novo, ele sentava entre as minhas pernas de novo, e descíamos de novo.
Hoje tenho ciência de que o rabo dele abanando nestes momentos era algo entre nervoso e esperançoso, como quem torcia para que na próxima vez ninguém mais se machucasse e enfim iríamos pra casa tomar água, comer e dormir.
Porque na mente de um cão, todo fim de todo santo dia era mais um dia de trabalho chegando ao fim, seja lá para qual trabalho nós contratamos ele, um cão fará o que tiver de ser feito.
Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, mordendo, latindo, enterrando ou capotando, um cachorro é um cachorro.
No documentário "Heart of a Dog" de 2015 a escritora, compositora e cantora Laurie Anderson conta sobre a a vida da sua cadelinha Lolabelle, uma espertíssima Rat Terrier que pintou quadros com as patas até ficar cega e então passou a ser pianista e então morre.
Mostrando cenas reais da sua vida intercaladas com uma animação imaginando a visão da cadela atravessando o Bardo, a passagem budista entre a morte e o renascimento em outra vida, Laurie também compara com a própria experiência durante os atentados de 11 de Setembro.
Em uma cena, Laurie narra o que ela imagina cada raça de cão respondendo ao seu dono:
"Se você tentar ensinar um comando para um Pastor Alemão ele responderá:
- Ok chefe, sem problemas, considere feito!!
Se você tentar ensinar um comando para um Poodle ele responderá:
- Por favor me ame, eu faço qualquer coisa se você me amar!!
Mas se você tentar ensinar um comando para um Terrier ele responderá:
- Espera, vai ser divertido?? Porque se não for divertido, eu não estou interessado."
Se Laurie tivesse um vira-lata ele consideraria qualquer tarefa uma missão cumprida, um ato de amor, e o dia mais divertido da vida dele.
No caso do Pluto era interessante notar o quanto ele também era empático quando me via chorando por qualquer coisa e me atacava com lambidas e tentativas de me alegrar mas era completamente indiferente quando o motivo do choro era ele.
Uma das poucas fotos da minha infância foi tirada exatamente um minuto depois dele ficar duas horas perdido no Parque Vila Velha na Cidade de Ponta Grossa no Paraná, onde ele aparece sorrindo e eu ainda chorando.
Corrigindo: perdidos estávamos nós, ele estava trabalhando desbravando a região e voltou quando se deu por satisfeito após cheirar e marcar território e constatar que o lugar era seguro para todo mundo.
Sabe como é, vira-lata quando chega em um lugar novo precisar conhecer, cheirar, mijar e desaparecer para depois voltar como se nada tivesse acontecido.
Todo mundo desesperado o e ele abanando o rabo com aquela cara de missão dada é missão cumprida parceiro, a minha pelagem é preta.
Desaparecia atrás de cadelas no cio e gastávamos gasolina pela cidade toda para fazer o Resgate do Soldado Pluto e encontrar ele feliz da vida no meio de outros trinta e sete vagabundos iguais a ele, nos ignorar, me deixar chorando e voltar dois dias depois feliz, com sede e fome, mancando, sangrando e com uma orelha faltando, que sempre se regenerava.
Mas quando decidia ser meu companheiro era imbatível, onde tivesse mato, poeira, lama, areia e cimento era lá que estaríamos, o banho depois era facultativo.
Na quadra debaixo da nossa casa nossos apelidos eram "o seco e o demônio", orgulho.
Foi para praia um verão só, quase enfartou quando viu tanta areia e quase desmaiou quando a água do mar bateu na bunda, ficou travado em pânico e começou a gritar quando tentei salvar ele de uma onda de sete centímetros de espuma.
Ironia, no rio da minha cidade ele era o campeão, mergulhava junto e ajudava a resgatar tênis perdido e tudo.
Se cada ano canino corresponde a sete anos humanos como dizem por aí então o Pluto passou longos noventa e um anos bem vividos ao meu lado. Assistia TV sem entender, pedalava comigo sem ter bicicleta e me atrapalhava nas manobras de skate para me ensinar como a vida era difícil.
Comia do meu prato como um lorde, enterrava as minhas meias como um coveiro comissionado e me defendia de trovoadas como um viking.
Já era então um adolescente velhinho rabugento quando andava no meu colo e na janela do carro, cheirando a cidade e latindo rouco pra tudo o que se movesse.
Um dia este imbecil resolveu do nada ultrapassar a barreira do perigo e pulou do meu colo para a rua com o carro em movimento, em treze anos (ou melhor, noventa e um) ele nunca havia feito isso e então nós mesmos o atropelamos antes de entender o acontecido.
Meu pequeno, leal e fiel Argos ficou vivo apenas mais duas semanas, sem conseguir se levantar e deitado no mesmo pedaço da mesma manta azul que deitou durante treze anos, manta dos meus primeiros cinco anos de vida e que cortamos em quatro mantas menores para ele.
Eu vou morrer me perguntando se os cachorros sentem nostalgia e se nestes últimos dias de vida ele lembrava das nossas experiências juntos, se toda jornada tem um fim em algum momento ela há de passar diante de nossos olhos.
Nada me tira da cabeça da sua plena consciência quando estava morrendo e as orelhas empinando e então abaixando e o rabo balançando devagarinho quando eu me aproximava e ouvia a minha voz significava um simples "tamo junto" ou talvez um "eu não me arrependo de nada" ou ainda "esse dia foi louco" ou, quem sabe, "fica frio, está tudo bem e assim que eu puder nós iremos, não interessa para onde e nem por quanto tempo, nós iremos".
Se durante noventa e um anos o seu rabo abanava por pura excitação agora parecia me ensinar de uma vez por todas e pela última vez sobre amizade, lealdade, coragem, companheirismo, gratidão, resiliência e perseverança.
Não interessa quantas vezes tentamos humanizar um cão com características diferentes de sua natureza, é ele que nasce e nos completa com emoções e sentimentos que não temos e precisamos aprender.
E se eu não fosse Luiz, gostaria de ser um Pluto.
Dizem que quando perdemos uma pessoa amada ela leva um pedaço de nós.
Quando perdemos um cão, ele morde uma parte gigante e leva com ele mas não existe perda, porque outra parte enorme dele fica se espreguiçando dentro de nós, com a barriga para cima.
Argos em grego significa “o que tem luz” mas existe Pluto na mitologia grega também, cuja etimologia deriva do grego antigo "Plutós" ou "rico", deus da riqueza e cujo culto de natureza agrária tinha como sede principal a ilha de Samotrácia.
Como deus agrícola, estava ligado às riquezas minerais e ao subsolo em geral e a sua figura estendeu-se a todas as formas de bem-estar, riqueza e perseverança.
Bom, eu nem podia imaginar isso quando tinha cinco anos de idade, apenas pensei no cachorro falante da Disney e amigo do Mickey Mouse mas faz sentido, rico meu Pluto nunca foi mas se tivesse vida eterna cavaria até não sobrar mais nenhum tesouro escondido no mundo, ainda mais porque na sua interpretação até meias sujas eram um tesouro.
Pluto, o meu Pluto, também não era lá muita luz, ele era infernal demais para ser associado a algum tipo de elevação luminosa mas o Pluto, o outro Pluto ali, por dominar o subsolo muitas vezes era confundido e identificado com o Plutão romano, deus do submundo correspondente ao Hades grego, o deus das sombras e dos mortos e cujo domínio era vigiado pelo Cérbero, o monstruoso cão de três cabeças que deixava as almas entrarem mas jamais saírem e despedaçava qualquer mortal arriscando passar por lá.
Agora sim, tudo faz sentido, pois o Pluto (o meu) não só era a sombra em pessoa mas também vigia do cemitério da cidade.
Vira-latas também são insubstituíveis, afinal depois de ser seu amigo fiel todos os dias, vinte e quatro horas por dia e por treze anos seguidos a única constatação possível eu também chamaria de paradoxo, todo vira-lata é comum e ao mesmo tempo único, eu vejo o Pluto em cada cachorro vagabundo por aí e nenhum deles se parece com o Pluto.
Que saudades, ser adulto sem cachorro é muito ruim, agora quando eu xingo alguém eu tenho de me defender sozinho.
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Mas existem formas de se ter um cachorro sem ter um.
Sabe como é, você pode não ter todo o tempo livre o suficiente para poder ter um cachorro, mas pode usar o seu tempo livre cobiçando cachorros alheios e construir uma amizade com eles.
No final de 2019 eu fiz um amigão na rua, depois fiz o dono dele se acostumar comigo e agora vejo o Hulk uma vez por semana e é ele quem decide o que vamos fazer, pois este ele tem literalmente apenas dois moods: caminhar, correr e ganhar carinho ou dormir, roncar e ganhar carinho.
Como vocês podem imaginar pela originalidade do nome, Hulk é um Pitbull.
Não vou julgar, se eu mesmo tivesse um Pitbull o nome dele seria Bronco.
Eu realmente não sei porque as pessoas têm tanto medo de Pitbulls, se você consegue observar e entender as sutilezas gestuais de um e perceber quão simples e expressivas elas são você se torna capaz de entender o comportamento de qualquer outro ser vivo, incluindo (ou principalmente) seres humanos.
Hulk por exemplo seguiu o protocolo típico, olhou de lado e ignorou a minha presença (pode se aproximar brother), então colocou a língua de fora (tô de boa, chega aí brother) e então cheirou a minha mão (essa mão sabe fazer carinho brother?), ganhou carinho, mexeu as duas patas dianteiras (aproveita que eu sou facinho brother), sentei do lado dele e ele se encostou (eu e você, você e eu brother) e então, fez o que todos temem quando vêem um Pitbull, foi na minha
frente, engatou a ré e entrou de bunda entre as minhas pernas.
Fica a lição: Se um Pitbull te der a bunda, é uma declaração de amor, confiança e proteção.
Cachorros manjam de contratos e se ele te der as costas é um contrato inviolável e indissolúvel, uma via de mão dupla onde ele diz de forma clara de que confia em você e se sente confortável
e em troca vai te proteger também.
Além de dois moods Hulk só tem duas personalidades, desbravador de bairros e desbrabavador de sonhos.
Quando ele está afim de caminhar mantém aquele pescoço duro e olhar apontando na direção onde ele quer ir, com aquela expressão de adolescente aprendendo a dirigir e acabou de aprender a engatar a terceira marcha.
Quem tem ou conhece um Pitbull sabe qual é essa expressão, aquele ar seguro e tolo de quem realmente leva a sério a letra de uma música do Charlie Brown Jr.
Quando não quer nada com nada costuma dormir e sonhar muito, e sonhar falando em caninês.
Hulk é silenciosamente apaixonante, nunca ouvi o seu latido mas conheço todo o seu alfabeto de respiradas e bufadas e mais ainda as suas expressões, talvez em complexidade de comunicação ele só perca para a Madalena.
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Durante dois anos simplesmente ignorei ela.
E 2020 comecei a caminhar por esquinas e calçadas ignoradas antes e em sentidos diferentes e assim conheci a Madá, rainha da intersecção da entrada do meu bairro, guardiã da Igrejinha Luterana da esquina e filha do Senhor José Carlos e da Dona Débora.
Mistura abençoada de Border Collie com pedigree de Vira-Lata ou seja, charme, alegria e inteligência de sobra. Costuma dar dez vezes mais trabalho que o Hulk pois ela só tem um mood: Precisamos conquistar o bairro e a cidade inteira.
Oferecida como toda boa vira-lata, pulou todas as etapas de aproximação e amizade e no nosso primeiro encontro foi logo oferecendo a barriga.
Ao contrário de um pitbull te dando a bunda, a barriga de um vira-lata não tem sutileza nenhuma, significa apenas WHY NOT?
Eu quero, você quer, eu sei que você quer, faz carinho aí.
Comecei a planejar, de forma inconsciente até, sair meia hora mais cedo de casa para ficar agradando a barriga desta desgraçada.
Mas como um minuto de carinho na barriga de um cão te garante um ano a mais de vida, ela me garantiu vida eterna então a relação custo-benefício mais que compensou.
E aí nós tomamos uma decisão, na próxima vez que eu encontrasse o humano dela, eu pediria a pata dela em passeio e ensinar para ela uns truques.
Dito e feito, como uma autêntica border-lata foi muito fácil treinar e ser treinado pela Madalena.
Ensinei dois truques para ela: Sentar e deitar me olhando nos olhos.
Ela me ensinou outros dois: Carinho na barriga e se eu não fiz carinho na ida ela não é obrigada a aceitar o carinho na volta.
Complicada e perfeitinha, faz manha como ninguém e quando feliz faz da reciprocidade a regra número um.
Cachorros manjam de contratos como já disse, e certos contratos, principalmente os de benefícios mútuos são, como já comentei também, invioláveis.
Faz carinho antes de caminhar e na volta passa aqui de novo.
O próximo passo é levar a Madá para cheirar o cu do Hulk e ver se conseguimos formar um time.
Time o qual o Nestor jamais fará parte.
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Ah o Nestor, paulista do interior, adotado na capital e emigrante para a Ilha da Magia.
Nestor é um Daschund, o que signfica entre muitas outras coisas que ele é mais inteligente que você.
E tem mais personalidade também.
Filhadaputamente autossuficiente, brinca e se diverte sozinho como ninguém e quando enfim está cansado tolera você fazer carinho nele.
Inclusive ele é um Daschund malhado, e isso também prova que além de mais inteligente e ter mais personalidade ele é mais bonito que você, mesmo sendo rebaixado como um Golf apreendido em blitz policial.
Nestor também respeita as leis e o regimento interno do seu relógio biológico e leva muito a sério esse lance de não brincar depois das dez da noite e vai dormir você gostando ou não, você sendo insone ou não, você querendo a companhia dele ou não.
Nestor não se enturma, não se emociona, não reconhece outros cães como cães e menos ainda pessoas como pessoas.
Nestor é um Daschund, você é apenas um humano.
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Por falar em insônia Pluto esteve do meu lado na mesma trincheira naquela mesma batalha onde um único tiro foi disparado e a cidade toda declarou guerra contra mim, mas antes disso eu quero contar sobre o ciclo da violência, cães aleatórios, vizinhos e o dia em que eu planejei matar um cachorro.
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Cápsulas do tempo.
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Os críticos vão falar e eu digo o mesmo: o 72 seasons do Metallica é o melhor album da banda desde o Black Album de 1991, mas isso não significa muita coisa.
Tudo o que eles fizeram depois do Black Album é tão ruim que não se pode levar em conta, thrash sempre foi trash e a maior banda thrash da história manda melhor quando resolve fazer um rockão básico.
Dito isso, ouça, está um discão e eles estão se divertindo e é isso que importa.
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O lançamento do foguete Starship da turma do Elon Musk foi adiado, aquele pintão de 50 metros cuja missão será encontrar a Vulva Spaceship no espaço e foder com todos nós levando o exército dos EUA pra enfiar a liberdade deles em qualquer lugar do planeta em apenas quatro horas.
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Por falar em cães e foder com todos nós a polícia da Cidade de Nova York nos Estados Unidos confirmou no dia 11 de Abril que passará a usar cães robôs no policiamento da cidade.
Eu não vou discutir as implicações disso mas imagina quando tivermos a versão brasileira, já temos o Zé Gotinha e logo teremos o puliça caramelo, se ele te cheirar e achar ok ele vira de barriga e se não você toma uma mordida na canela e vai pegar tétano.
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Para encerrar te deixo dez (ops, quinze) filmes, documentários e animações sobre e com cães que você poderia assistir ao invés de Marley & Eu:
Feher Isten
Isle of Dogs
Stray
All Dogs Go to Heaven
El Perro
The Plague Dogs
Vidas Secas
Dogman
White Dog
Bolt
Heart of a Dog
Les Triplettes de Belleville
Cujo
Amores Perros
Frankenweenie
Não sei em qual canal ou serviço de stream tem esses filmes, faça o download, se um vira-latas consegue sobreviver em um mundo de humanos indiferentes você consegue fazer um download sozinho.
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