Foto: Ayrton Cruz
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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19/07/2023
NI HAO
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Quando um engraçadinho se curva, todos se ajoelham.
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Ni Hao (na tradução literal, “tu bem”, ou mais precisamente, "está tudo bem?") é uma saudação típica entre os chineses e de significado idêntico ao nosso “como está” em português.
A resposta típica é outra expressão, Wo Hen Hao ("eu estou bem"), e ambas as expressões também podem indicar, nesta ordem, um convite ("vamos?") ou um pedido de confirmação ("você topa?") e um correspondente "sim".
No Reino Unido ainda é comum as pessoas usarem as expressões "I'm in" ("estou dentro"), quando aceita um convite ou desafio, e "I'm out" ("estou fora"), quando desiste, na forma "I'm in a bow-in" e "I'm in a bow-out", uma herança das batalhas com arco e flecha (bow and arrow) que tanto fizeram parte da história de britânicos, escoceses e irlandeses, muitas vezes uns contra os outros.
Quando a pessoa aceita ela assume uma postura ativa como quem está pronto para a briga e quando declina ela usa uma postura reverente de quem se rendeu ao desafiante e está saindo de cena ou, para fazer jus a expressão original, entregou as armas.
Pelo mesmo princípio a expressão "take a bow" ("pegue um arco") se tornou pura e simplesmente, tomar uma atitude.
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Você já sabe, eu sei, nós já sabemos, cães são maravilhosos.
E quando você começa a entender a linguagem corporal deles, tudo fica mais lindo ainda.
O olhar vidrado do Border Collie, a postura de gerente recém-promovido do Terrier, o rosnado inútil do Pinscher, a virada de barriga do Dachsund, a aparente indiferença do Pitbull e claro, a malemolência cheia de boas e más intenções do vira-latas.
E mais incrível ainda é quando eles resolvem interagir uns com os outros na rua, na pracinha, na vizinhança.
Por mais domesticados que nós e os cães nos tornamos, em momentos opostos de descontração ou pressão sempre vamos mostrar traços da nossa natureza selvagem, principalmente na nossa linguagem corporal.
Os ombros eretos ou caídos, o olhar direto ou para baixo, os braços firmes e soltos ou recolhidos e cruzados, tudo isso nos entrega antes de abrirmos a boca e no caso dos cães (lá vamos nós de novo) o rabo e o cu, retraídos ou empinados.
Sim, além de cheirar cus os cães possuem também um jeito especial de saudar os colegas e de quebra um requebra de intenções na relação postural com os mesmos.
Você já viu a cena: um cão medroso coloca automaticamente o rabo entre as pernas tapando o dito cujo e assume uma posição curvada, orelhas abaixadas e olhar debaixo para cima.
Se o cão é confiante e dominante a cena é exatamente oposta: rabo empinado, cu empinado, peito empinado, orelhas empinadas e olhar fixo (também empinado) em quem tiver coragem de encarar ele.
Quando dois cães estão confiantes e confortáveis na presença um do outro ambos decidem, automaticamente, brincar.
E existe uma linguagem corporal clara que demonstra isso, o bow in e o bow out.
Você também já viu esta cena, e ela é divertidíssima.
Ambos dizem sem precisar dizer, nem muito menos latir: eu posso te matar mas não quero, você parece não querer o mesmo, vamos apenas fingir e brincar?
E aí segue uma mistura de postura submissa e ao mesmo tempo combativa, os corpos estão curvados mas ativamente dispostos, o peito no chão mas o popô o mais alto possível e aí tão rápido quanto se curvaram o duelo começa com mordidas falsas, rosnados falsos e latidos falsos, não dói, não assusta, não machuca e não espanta, afinal eles estão brincando e ao mesmo tempo treinando para a vida canina adulta.
E sim, um cão confiante e feliz tenta fazer o mesmo com o seu humano favorito mais próximo.
Se ele estiver sorrindo a brincadeira vai rolar o tempo que for necessário.
Um dia pode ser útil.
E entre os seres humanos, oras, não é lá muito diferente, embora nem sempre seja divertido perceber isto.
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A mais antiga evidência conhecida do uso de arco e flecha vem de locais sul-africanos como a Caverna Sibudu onde prováveis pontas de flechas foram encontradas, datando de aproximadamente 72.000 a 60.000 anos atrás
Fora da África os mais antigos foram descobertos apenas em 2020 na caverna Fa Hien no Sri Lanka, com pontas feitas a partir de ossos de animais e datadas de 48.000 anos atrás, onde a caça provavelmente se concentrou em macacos e animais menores como esquilos (cujos restos foram encontrados no mesmo sedimento das pontas), e os arcos existentes mais antigos completos em uma peça são os arcos de Olmo Holmegaard da Dinamarca datados de 9.000 a.C..
O Império Mongol dos séculos XIII e XIV foi o maior império de terras contíguas da história e o segundo maior império em área, perdendo apenas para o Império Britânico.
Com origem na Mongólia no Leste Asiático, o império chegou a se estender da Europa Oriental e partes da Europa Central até o Mar do Japão e também para o norte, em partes do Ártico, para o leste e para o sul no subcontinente indiano, no sudeste da Ásia continental e no planalto iraniano e para o oeste até o Levante, e surgiu da unificação de várias tribos nômades na pátria mongol sob a liderança de Genghis Khan.
A arma tradicional dos mongóis era o arco mongol, espécie de arco recurvo composto por madeira, cola e chifres de animais e que com a redução de força relativa ao arco longo os arqueiros conseguiam atirar com mais agilidade e precisão.
O tamanho relativamente menor também possibilitava maior portabilidade em cima da montaria e estes cavaleiros, chamados Mangudais, eram uma arma poderosa contra a infantaria inimiga, por juntar dois princípios de combate: arco e flecha e cavalaria. Um Mangudai poderia ser rápido e preciso para atingir os inimigos mesmo estando longe e era treinado para atirar a flecha com o cavalo em movimento, em pleno galope.
Acredita-se que a expansão do Império Mongol difundiu um costume entre os povos dominados pelo caminho, o ato de curvar-se diante da passagem dos cavaleiros com o olhar baixo e em posição de submissão, e o passar dos anos e séculos tornou uma forma respeitosa e humilde de cumprimento, diante de líderes, pessoas mais velhas, animais considerados sagrados e até imagens religiosas, um gesto ainda tão tradicional, generalizado e naturalizado que em alguns povoados é comum ver até mesmo animais domésticos e semi-domésticos imitar o gesto, e com a mesma manifestação de boas intenções.
Este tipo de reverência tende a ser a base em comum aos povos digamos, de olhos puxados.
No Japão a forma mais comum de cumprimento é conhecida como "Ojigi" (que significa literalmente “arco”) nascida durante os períodos Asuka e Nara (538-794 dC) com a introdução do budismo chinês. O Ojigi vai além de um simples cumprimento e demonstrar respeito, perdão e gratidão, mas também identificação com uma posição mais elevada de status social.
Na cultura japonesa também é recomendado que a pessoa mais jovem ou subordinada curve-se primeiro, mais baixo e por mais tempo e o contato visual durante o Ojigi não é aconselhado pois é considerado indelicado, e o grau do ângulo em que uma pessoa se curva está relacionado com a profundidade do respeito demostrado em relação à outra com quem está interagindo.
Existem vários tipos de Ojigi e de acordo com as respectivas curvaturas:
Keirei (para cumprimentar amigos e familiares): Ao se encontrar ou se despedir, as pessoas devem inclinar o tronco em 45 graus.
Kirei (de joelhos): Muito utilizada no passado, caiu em desuso nas últimas décadas. A saudação, adotada tanto em ambientes internos quanto na rua, era realizada a partir de uma postura chamada kiza, em que a pessoa fica de joelhos.
Eshaku (cordialidade): Tem inclinação de 15 graus e é praticado o tempo todo. Serve, por exemplo, para agradecer ao sair de um restaurante.
Saikeirei (saudação ao rei): Até o fim da Segunda Guerra Mundial era utilizada para louvar o imperador, com um arco de 75 graus.
Dogeza (perdão por uma falta grave): É uma saudação profunda, ao qual o homem fica de joelhos e encosta a testa no chão.
Em culturas ocidentais as formas de cumprimentar tendem a ser mais horizontais e a diferenciação de status social se dá pela displicência e liberdade de quem possui status superior se comporta no mesmo ambiente como, por exemplo, Richard Nixon.
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Richard Nixon foi o trigésimo sétimo presidente dos Estados Unidos em 20 de janeiro de 1969 (sendo reeleito em 7 de novembro de 1972 e renunciando em 9 de agosto de 1974) e era conhecido pelo riso fácil, geralmente gargalhadas, não importando qual ambiente ou em qual companhia estivesse, sendo considerado o precursor do meme LOL, de "laughing out loud" ou, rindo em alto e bom som.
Apesar desta fama na minha opinião ele é, de longe, o tipo mais sem graça da história da geopolítica mundial, e apenas um único episódio dentre dezenas de outros protagonizados por ele ou em seu governo, pode mostrar isto.
No dia 15 de Agosto de 1971, dia daquela fábula estilo "era uma vez" onde o sapatinho de cristal das democracias ocidentais se perdeu quando um país acostumado a emprestar dinheiro para todo mundo brincar de guerra durante décadas ficou sem dinheiro para bancar as próprias guerras e bateu de porta em porta cobrando a dívida.
E como ninguém se prontificou a pagar este país mandou o ator digo, presidente, Richard Nixon, anunciar em rede nacional (mundial) de rádio e televisão para avisar que a partir daquele dia o mundo todo estava sendo sequestrado e o resgate só poderia ser pago em dólar, mesmo quem não tivesse dólar.
Num discurso muito bem elaborado para parecer ter sido escrito do próprio punho e falado na primeira pessoa naquele tom paternal acostumado a enganar quem acredita no poder do voto, Nixon não resistiu e deixou escapar a seguinte frase:
- Let me lay to rest the bugaboo of what is called devaluation.
Em bom português:
- Me deixe acalmar o bicho-papão da inflação.
Uma frase repetida pelos nossos próprios e péssimos atores há pelo menos 40 anos desde então.
Disse sem precisar dizer, nem muito menos latir, que iriam brincar com o nosso dinheiro e 50 anos atrás não só ficou claro como também escancarado o quanto a vaga de um presidente eleito ou não é apenas um cargo figurativo cuja atuação é determinada pelo sistema bancário.
Alemanha, Japão, Inglaterra e claro, Rússia, ficaram de fora.
E a China?
Sequer tocou no assunto, ou talvez tenham conversado no pé do ouvido com os Estados Unidos porque exatamente um mês antes, no dia 15 de Julho de 1971, o mesmo engraçadinho fez um discurso ao vivo simultaneamente com Pequim, alegando a paz mundial ser possível apenas se o maior país do oriente no período fosse incluído na política internacional.
Apesar de também parecer natural e espontâneo (afinal ele era um bom ator), este discurso foi pronunciado uma semana depois do seu secretário, o nada engraçadinho Henry Kissinger, fazer uma visita secreta ao país para não só comer com mas também mexer os pauzinhos do jogo de varetas da geopolítica em plena guerra fria.
Quase um ano depois o próprio Nixon em pessoa atravessou o Atlântico para sorridentemente apertar a mão do ditador mais imundo de toda a história e a China em contrapartida fez o clássico jogo da famosa arte da guerra de apertar com uma mão e manter a outra nas costas e nascia assim o também agora famoso socialismo com características chinesas ou, em outras palavras, o melhor do capitalismo para os líderes e o pior do comunismo para o povo, este regime também tão naturalmente bom que, assim como a democracia, precisa igualmente ser forçado na base do voto obrigatório, ameaças, guerras e trabalho escravo.
Mao Tsé Tung e Richard Nixon apertaram as mãos sem precisar dizer, nem muito menos latir, provavelmente nem mesmo rosnando: eu posso te matar mas não quero, você parece não querer o mesmo, vamos apenas fingir e brincar com o dinheiro dos outros?
Embora todas as fotos deste encontro mostrem ambos confiantes e dominantes nós sabemos, por pura e simples dedução, se você viaja sabe-se lá quantos mil quilômetros para apertar a mão de alguém, este alguém venceu o jogo.
A Teoria da Ferradura é definitivamente um espelho, os opostos se atraem e a maior democracia passou a alimentar o (péssima metáfora) dragão chinês na maior e pior ditadura em troca de mão de obra barata (leia-se escrava) para acalmar o tal bicho-papão da inflação norte-americano e, 50 anos depois, ninguém quis pagar o resgate e o mundo continua em cativeiro, a China não ficou do lado de ninguém, todo mundo compra na Ali Express e de troco o acordo secreto se tornou um confronto aberto e a suposta esperança de paz trouxe a terceira guerra que de fato estava sendo planejada para acontecer.
Você já sabe, não existe previsão de futuro, apenas o passado e o presente ignorados.
É este o preço de não se estudar a história, 100 anos atrás tiraram o dinheiro das nossas mãos e 50 anos atrás todos nós, o povo, fomos sequestrados no episódio hoje conhecido como Choque Nixon, o maior calote da história da humanidade, anunciado pelo engraçadinho, um Hound Dog perebento, um gigolô, um cão sarnento e furtivo, quando você pensa ser um bow-in ele já deu um bow-out e desapareceu.
Cão que ladra sai mordido, quando um político se curva é o povo que se ajoelha, e se ele decide empinar o rabo e oferecer o cu, nunca é o próprio.
E só para piorar, te oferece Pepsi.
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Cápsulas do tempo.
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O Brasil tem 203.062.512 de habitantes segundo o Censo Demográfico de 2022, realizado mais de dez anos após a edição anterior da pesquisa.
Os resultados foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o número veio abaixo das projeções anteriores do órgão.
Em 2021 os cálculos apontavam que país teria ao menos 213 milhões de habitantes mas em dezembro de 2022, já com dados prévios do levantamento, o IBGE revisou a estimativa para 207,7 milhões, ainda 4,7 milhões de pessoas acima do cálculo final agora apresentado.
Seremos muito em breve um país de velhos.
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Hoje fez 80 anos do afundamento do submarino nazista U-513 no litoral de Santa Catarina por um avião da marinha dos Estados Unidos, perto de São Francisco do Sul e a poucos quilômetros de Florianópolis, depois de fazer estrago na costa brasileira afundando barcos e navios civis e comerciais e matar dezenas de pessoas.
Ao longo de três anos 71 navios foram atacados em águas brasileiras por 11 submarinos alemães diferentes e no total o país perdeu mais de 30 navios ao redor do mundo na Batalha do Atlântico Sul, a maior parte deles no próprio litoral, além de quase 1.500 vidas. A declaração de guerra veio apenas em agosto de 1942, quando o submarino alemão U-507 afundou seis navios e matou 627 pessoas em apenas três dias.
Se o U-513 estava vindo matar os manezinhos da ilha ou apenas abastecer o submarino com tainha jamais saberemos, mesmo tendo sido encontrado em 2011 na expedição do navegador Vilfredo Schürmann a sua visitação e exploração interna são proibidas por se tratar de um túmulo de guerra de acordo com a convenção militar internacional, e a sua entrada nele é tipificada como crime de violação dos corpos de soldados mortos.
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A humanidade não entrou em extinção, Greta Thunberg está viva e a gente também.
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