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ENSAIO 49: BRUCE LEE

Atualizado: 26 de jul.



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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05/02/2024


BRUCE LEE


Tum posh plá tumpsh.


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Bruce Lee é definitivamente um ícone cultural e uma figura curiosa e intrigante, praticamente um meme da era analógica de tão replicado, imitado, compartilhado e divisor de opiniões.


Ao contrário do pensamento comum Bruce Lee não era mestre em Kung Fu e não existem registros de que tenha estudado esta arte marcial. Na verdade ele era criador, praticante e mestre de uma luta mista criada por ele mesmo, o "Jeet Kune Do" ou "Jit Kun Do" (do chinês: caminho do punho interceptador), uma luta desarmada, com foco na autodefesa influenciada pelas filosofias zen-budista e taoísta e somando conceitos e práticas do Wing Chun (este sim um Kung Fu do sul da China, praticado em curtas distâncias do oponente), chutes do Taekwondo, a potência de soco do Boxe, a postura e esquivas da Esgrima e as imobilizações do Jujutsu, o Jiu-Jitsu original.


Entre as principais características do Jeet Kune do estão não desperdiçar tempo ou movimento e prezar pela eficiência, direcionamento e simplicidade, interceptar o ataque de um oponente com um ataque próprio em vez de um simples bloqueio (o ataque é defendido ou desviado e um contra-ataque é desferido ao mesmo tempo, movimento essencial copiado da esgrima), e chutes baixos direcionados para as canelas, joelhos, coxas e barriga do oponente.


A principal filosofia pode ser resumida pela frase "Absorva o que é útil; desconsidere o que é inútil" e claro, a famosíssima analogia da água ("Seja como a água meu amigo), infinitamente flexível, pode se dividir e contornar reunindo-se do outro lado, ou pode colidir, pode erodir as rochas mais duras batendo suavemente nelas ou pode fluir além da brecha mais estreita.


Apesar de ser considerado o precursor do MMA Bruce Lee nunca formalizou o Jeet Kune Do antes de morrer, criando gerações de seguidores e academias através do legado oral e na confiança na filosofia do seu criador.



O fato é que mesmo sem ser uma luta formal existem muitas academias de Jeet Kune Do espalhadas pelo mundo mas mais ainda, muitos meninos, adolescentes e homens crescem com a "Síndrome da Lutinha" ou "Complexo de Bruce Lee", a mania muito feia de arrumar brigas na rua ou, em tempos de paz, desafiar amigos em aniversários, casamentos e até velórios com chamados para briga e fingido agilidade ao mesmo tempo que fazem onomatopoeias de quadrinhos de super heróis com a boca: Tum posh plá tumpsh.


Até um amigo mais irritado, ágil, ou espírito de porco resolver o UFC infantilóide com a clássica e milenar beliscada de cascavel no saco.


Você sabe, além da obsessão por pinto, homem também ama beliscar o saco alheio.


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Muitos anos antes de apanhar da minha primeira turma e então ter a minha primeira turma, eu já apanhava.


A primeira surra pública que eu tomei foi quando ganhei uma bicicleta e por um momento acreditei ser dono da cidade, até ir pedalar perto da beira do rio onde tinha uma favelinha quando me cercaram, me surraram e enquanto eu ficava chorando sentado no chão a molecada ficou se revezando na minha bicicleta.


Algum tempo depois me devolveram ela e fui embora para casa sem olhar para trás e, como você já pode imaginar, dois dias depois estava lá de novo.


Como já cheguei oferecendo a bicicleta não precisei mais apanhar, eu ensinava eles a pedalar, eles me ensinavam a nadar no rio da cidade.



Um dia já adulto em Florianópolis e já de moto (que diga-se de passagem, não era minha) eu estava voltando da praia com o Deco, amigo e vizinho, quando um carro com três caras dentro nos jogaram em direção ao acostamento e xingamos alto o suficiente em agradecimento e eles então frearam, saíram do carro e vieram na nossa direção.


Estes não eram Demolay pois batiam bem, apanhei feio de um deles mas quando dei por mim o Deco havia desmaiado um, inutilizado outro e acertando em cheio o último da turma e eles então foram embora sem olhar para trás.


Perguntei qual era a mágica e o Deco respondeu: sou faixa preta de Karatê, quer treinar comigo?

Aceitei e por um ano acordei às cinco e meia da madrugada para treinar às seis e meia da madrugada e tomar café lá pelas sete e meia da madrugada até que a academia onde ele dava aulas faliu e o Deco mudou de cidade.



Alguns meses após em uma noite eu estava cortando caminho por dentro da UFSC quando escutei um berimbau e eu não sei o que vocês sentem mas quando um berimbau toca ele simplesmente te chama e você apenas segue o som até achar onde ele está.



Cheguei perto do ginásio e encontrei um negro (nos anos 90 era negão) que não me cumprimentou, eu não cumprimentei ele e o berimbau continuou tocando sozinho pois um berimbau bem tocado sempre parece ter vida própria.


Chegaram outros, e logo mais outros, e todos entraram e de repente ele virou para mim e disse:


- Vai cagar ou desocupar a moita?


O convite era claro, entrei me cagando todo, apanhei e não desocupei e assim foram mais seis anos da minha vida apanhando do Korvo, rindo, tocando berimbau pandeiro e atabaque e cantando e nas horas vagas levando galinhas vivas para o terreiro do pai de santo dele lá na puta que pariu em Biguaçu. Na porta do terreiro eu tinha de fazer uma escolha, ou eu iria embora ou eu entrava, se entrasse teria de ficar até o outro dia. Eu sempre ficava.


O Korvo tinha um jeito muito peculiar de fazer você se sentir especial do lado dele, ele te surrava, e não adiantava reclamar, choramingar, se revoltar, muito menos sugerir outra forma de demonstrar afeto.


Imediatamente um segundo após cada tapa, chute ou rasteira você também ganhava o maior sorriso do mundo e quando você, por um acaso (in)feliz do destino, acertava um tapa, chute ou rasteira nele, o sorriso ficava maior ainda, o Korvo era a maior manifestação da metáfora de que se a vida te bater, bata de volta.


E mesmo batendo, eu apanhava todos os dias e era feliz, e assim foi até os joelhos pedirem uma consulta e cujo médico pediu uma radiografia que antes de ficar pronta tive de ouvir dele que era "caso para cirurgia".


Como ele era médico e não vidente apenas peguei a radiografia e fui embora, aprendi a pedalar de novo e um dia passando por uma academia resolvi fazer boxe com o Maurício.



O Maurício era muito esperto e tinha a melhor didática possível para ensinar: enfiou o ringue no meio da academia de musculação, no meio da mulherada.


Mulherada fazendo leg press, mulherada fazendo abdominal, mulherada no chão com a bunda para cima levantando aquele pesinho com as canelas, mulherada fofocando, mulherada rindo, mulherada sendo mulherada.


Nada ensina mais rápido um homem a esquivar de um soco que o medo de apanhar no meio da mulherada.


Não aprendi a bater muito bem, mas ninguém lá pode dizer que eu apanhei, e a parte mais sensacional sobre Boxe é que o Boxe não tem mistério, misterioso mesmo é o Pa-Kua.



A gente passa na frente, olha, e parece ser uma boa ideia.


Defesa pessoal.

Segurança.

Autoestima.


As mulheres vão querer você.

Seus amigos vão querer ser como você.


Um dia eu decidi ser mestre de Pa-Kua ou, pelo menos, fazer Pa-Kua e contar para todo mundo que fazia Pa-Kua. Mas para isso eu precisava primeiro ir na aula experimental e aprender os primeiros golpes e a filosofia, a arte da guerra em tempos de paz, diziam eles.


E lá fui eu de moletom, camiseta e descalço e em um dos momentos mais (menos) impressionantes da aula o mestre Pa-Kua nos ensinou como escapar de estar encurralado em um canto de bar sendo atacado por três homens: Um com uma faca, outro com uma garrafa e o último com uma cadeira.


Enquanto ele montava este cenário assustador não resisti e perguntei:


- Mestre, se um cara consegue criar uma situação em um bar onde ele irrita três outros caras a ponto de todos decidirem atacar ele ao mesmo tempo com uma faca, uma garrafa e uma cadeira, não seria melhor ele aprender a evitar este tipo de lugar ou situação?


O mestre respondeu automaticamente, sem pensar:


- Os outros três podem ser lutadores de Pa-Kua também, por isso é importante saber como escapar.


Silêncio constrangedoramente reflexivo.

Cenário montado.

Ele conseguiu escapar.


Das duas, uma: ou ele era a maior arma humana jamais inventada ou a maior ameaça que ele encontraria por aí seria outros iguais a ele, arruaceiros de bar, cagam, não desocupam a moita e ainda ameaçam os outros.


E eu fui embora pensando que seria melhor não aprender esta luta e jamais convidar meu mestre Pa-Kua para tomar uma cerveja e claro, não contar para ninguém que, por um dia, eu treinei Pa-Kua, vai Pa-Kua que te pariu.


Mas em um determinado momento o tatame te chama de novo e decidi, após décadas olhando de longe, aprender Jiu-Jitsu, a arte suave de dobrar roupas com a pessoa dentro.



Você tem duas opções quando decide aprender Jiu-Jitsu, orelha normal ou orelha de couve-flor, é uma escolha pessoal sua e a sua moral pública vai alternar dependendo de quem estiver ao seu redor.


Se as tuas orelhas estiverem inteiras os seus amigos não vão acreditar que você faz Jiu-Jitsu, se elas estiverem quebradas vão falar que você é afobado e não sabe lutar bem.


O que ninguém te conta é que o Jiu-Jitsu veio diretamente da Capoeira pois lutando bem ou não você vai aprender tudo sobre samba, bastam apenas três meses de Jiu-Jitsu e o seu corpo vira uma rodinha de choro. A tua coluna cantarola igual um berimbau, os teus ombros estralam como um pandeiro, as tuas costas ecoam como um atabaque, as tuas mãos se transformam em um tamborim, o teu pescoço vira um ganzá e os teus cotovelos passam a se comportar como um agogô, as tuas costelas choram como um cavaquinho e os teus joelhos viram um par de cuícas, ainda mais se o seu professor for o Saldanha, o maior sambista de todos.


Mas como em uma roda de samba cada minuto no tatame vale ouro com uma diferença, na roda de samba a mulherada arrasa e no Jiu-Jitsu a mulherada arrasa com você. Não subestime uma bonitinha com rabo de cavalo e unhas feitas, aceite a surra e lembre a maior lição da melhor arte marcial de todas: deixe o seu ego na porta antes de entrar.


Até mesmo porque a maior e indisputável qualidade do Jiu-Jitsu é que qualquer pessoa, de qualquer idade ou característica física, pode fazer, basta ter dinheiro para comprar esparadrapo de tonelada.



Criança, idoso, menino, menina, menino-menina como o Eduardo, alto ou baixo, nerd ou surfista, surfista nerd e até paraplégico e cego, se um paraplégico cego encosta uma das mãos em você pode acreditar, você vai se dar mal ou no mínimo passar trabalho.


Por falar em ego as faixas do lutador de Jiu-Jitsu antes de tudo mostram a maturidade do praticante:


Faixa Branca: peito de bombo, esconde a faixa enrolada dentro do quimono quando sai da academia.


Faixa Azul: órfão, todo mundo ignora, enrola a faixa fora do quimono e tenta mostrar para todo mundo em qualquer situação social.


Faixa Roxa: adolescente rebelde, acha que pode tudo e com todos, usa a faixa nos ombros quando sai da academia e nesta fase geralmente as orelhas mudam de formato.


Faixa Marrom: pai de todos, sabe tudo, fala com todo mundo, todos convidam para o churrasco, não faz questão de mostrar a faixa mas também não esconde.


Faixa Preta: o novo faixa branca, peito de pombo, postura de corretor imobiliário, aperto de mão de advogado tributário.


O filósofo, neurocientista e faixa preta Sam Harris também usou a água como metáfora perfeita para definir o Jiu-Jitsu, leia no original e perceba como também vale para inúmeras outras experiências da vida:


I can now attest that the experience of grappling with an expert is akin to falling into deep water without knowing how to swim. You will make a furious effort to stay afloat—and you will fail. Once you learn how to swim, however, it becomes difficult to see what the problem is—why can’t a drowning man just relax and tread water? The same inscrutable difference between lethal ignorance and lifesaving knowledge can be found on the mat: To train in BJJ is to continually drown—or, rather, to be drowned, in sudden and ingenious ways—and to be taught, again and again, how to swim.


Eu poderia resumir apenas como: pare, respire, pense. Você nunca vai se arrepender das atitudes que você respirou fundo antes de tomá-las.


Como John Houston e eu já dissemos, se quiser fazer amizade com um homem lute com ele e se quiser entender o que se passa no coração dele ouça Hardcore.


Eu diria inclusive para você não perder nenhuma oportunidade de bater de volta, pois como diz o sensacional título do disco do Mogwaii: o Hardcore nunca vai morrer, mas você vai.



O Chorão por exemplo já se foi e se dependesse de nós teria morrido anos antes da fama, época inclusive que eu já estava conformado que morreria virgem, mas antes de falar dele esse papo de voltinhas de bicicleta me fez lembrar uma história e citando Chorão lembrei das meias brancas dele e que me fizeram lembras outras histórias ainda.


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