Foto: Lucas Miró Horn
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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08/04/2024
BIRA
ÍAÊ, BELEZA?
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Esta é apenas uma história, sobre apenas uma pessoa, mas se divide em três momentos diferentes.
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Alguns anos atrás eu tive um grande colega de trabalho, o Ubirajara. Resumidamente, o Bira.
O Bira além de um ótimo trabalhador também era muito engraçado, e quase sempre involuntariamente.
Uma vez nós estávamos conversando sobre o problema da existência de banheiros públicos coletivos masculinos e os tipos invariavelmente assustadores que parecem viver por lá: O filho da puta que entra assoviando fingindo estar relaxando e provando estar mais tenso que qualquer outro, o filho da puta infeliz que vem exatamente do seu lado mesmo quando o banheiro está vazio, o duplamente filho da puta e infeliz que vem do seu lado com o banheiro vazio e ainda por cima puxa assunto quando você está mijando, o triplamente filho da puta e infeliz que além de vir do seu lado com o banheiro vazio e antes de puxar assunto ainda te dá um tapa nas costas enquanto você ainda está mijando, o quadruplamente filho da puta e infeliz que entra em silêncio e te dá um sorrisinho enfim, a lista de erros num banheiro coletivo masculino é imensa.
Mas nada ganha da aflição de ter de fazer cocô fora de casa e o medo de ser reconhecido pelo seu calçado através do vão inferior da porta.
Segundo consta este vão foi criado para situações onde a pessoa passa mal e desmaia ou coisa parecida e assim ela possa ser socorrida mais facilmente e claro, também ajuda muito qualquer vigia descobrir contando os pés de quantas pessoas estão dentro do espaço onde deveria ter uma só mas na minha humilde opinião o vão inferior dos cagódromos públicos possuem uma função bem clara: um sistema de assédio e vigilância horizontal constante, um panóptico mal cheiroso em uma sociedade distópica onde todos vigiam todos e o seu chefe fica tranquilo sem precisar gastar com auditorias, reuniões, sermões e advertências.
Nada controla mais uma pessoa que um colega descobrir ela cagando em banheiro público.
Já ouvi caso de gente levando a mochila para esconder os pés e cagar em paz, e acabar sendo reconhecido pela mochila mesmo.
Tem também aquele que cagava no trabalho com tanta frequência a ponto de sempre sair com o celular teatralmente e dizendo precisar fazer uma ligação mais demorada mas um dia, em pleno ato, o celular realmente tocou e um colega (que estava só mijando pelo jeito) reconheceu ele pelo toque.
Desmascarado, passou a não mais fazer ligações.
O Bira mesmo disse uma vez, com sua genialidade involuntária de sempre:
- Prefiro morrer num acidente de avião a ser pego cagando no trabalho, morrer voando você ainda tem chance de ser lembrado com carinho.
Pois um belo dia eu entrei no banheiro (apensas para mijar, juro) e adivinha?
Olhei para o vão de uma das portas e lá estava ele: o par de sapatênis bicolor do Bira.
Fiz "toc toc toc" na porta e disse sem dó:
- Faaala Bira, beleza?
Longos 3 ou 4 segundos depois ele respondeu com a voz fina mais grossa da história, quase um ventríloquo:
- Íaê, beleza?
Literalmente falando pelo cu.
Ele nunca mais foi o mesmo comigo depois deste dia, pareceu ter travado este momento da nossa intimidade e nunca mais me disse um simples "bom dia" ou "boa tarde", todo oi agora era sempre "Íae, beleza?", sem olhar diretamente nos olhos e com o sorriso sempre culpado mas continuou sendo sempre o Bira, grande Bira.
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Mas isto é passado, anos depois Bira se tornou meu vizinho. E não sabia disto.
Na verdade eu me tornei vizinho dele mas ele não sabia disto também.
Morei em um prédio de três andares rodeado por casas em uma rua bem inclinada e a casa do Bira era alinhada com as janelas do meu apartamento, uns 20 ou 30 metros distante.
Pelas diferenças de horário ele nunca me viu ali pela rua, mas eu sempre via ele lavando o carro, regando o jardim, sentado na varanda, chegando do trabalho, pendurando toalha na janela.
E sempre que o meu humor permitiu e os astros se alinhavam e eu via ele, fosse às seis da manhã, meio-dia ou seis da tarde, dia útil, domingo ou feriado, se eu estivesse tomando banho, cozinhando ou arrumando o quarto eu não perdia a chance: me escondia de forma que ele não me visse mas eu ainda poderia ver a reação dele e gritava:
- BIRÁÁÁÁÁÁÁ!
Com ênfase no "A" ou:
- Ô BÍÍÍÍÍRA!
Com ênfase no "I".
Ele olhava para a frente ou para os lados assustado e desconfiado e com o olhar desfocado e na dúvida sempre sorria para o nada.
Um sorriso como quem dizia "Eu faço cocô em banheiros públicos, o tempo todo."
Uma vez ele olhou para cima, juro, e em outra acenou timidamente para o nada, provando de alguma forma já estar acreditando em uma voz superior chamando ele para uma missão.
E se você acha este ser o limite, saiba que fiz isso por quatro anos sem cerimônia nenhuma.
Não deveria ser fácil ser o Bira, nem sempre fazia faz cocô em casa.
E quando estava em casa, ouvia vozes.
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Em 2019 um dia eu vi o Bira em uma cadeira de rodas, algumas semanas ou meses depois me acostumei com a cena e percebi que a cadeira parecia ser definitiva e mais algumas semanas ou meses depois fui lá conversar com ele e contar que enfim, era eu quem assombrava ele.
A resposta dele foi a melhor possível:
- Eu imaginei que seria alguém idiota como você.
Não tive coragem de perguntar sobre a cadeira de rodas, conversamos sobre a vizinhança, trabalho, conheci o pai dele e trocamos uns acenos quando ele passou a saber de onde a voz vinha.
Em 2020 percebi em algum momento que ele não aparecia mais tomar sol como era rotina e, na verdade, ele não aparecia mais.
Algum tempo depois fui conversar com o pai dele, Bira morreu de complicações de uma terceira cirurgia para tentar recuperar os movimentos das pernas, movimento perdido em um acidente na estrada indo para o interior do estado.
A vida tem dessas, um dia você flagra seu colega cagando, no outro você perdeu um amigo e não sabia.
Mas tudo bem, o que se leva dessa vida são as trolagens, e se é fácil zoar quem usa sapatênis podemos muito bem arriscar a vida trolando a turma do coturninho.
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Cápsula do tempo.
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Pelo que entendi nem os robôs irão escapar de ter de lidar com RH e gerente.
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