Foto: Lucas Miró Horn
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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06/08/2024
SHEILA
Apelido Ju, de preju.
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Quase 15 anos após plantar uma Araucária nós estávamos em Urubici e como de costume também fomos visitar o senhor Jardel e fazer um carinho na Bela, a égua dele.
Quando chegamos ele olhou ela nos olhos e falou:
- A filha da puta tá prenha.
A égua agitou a cabeça e respondeu com aquele FFRRFRR-RRR de quem não quer tocar no assunto e como ele descobriu que ela estava prenha só olhando nos olhos somente sitiante entende, mas aí o verdadeiro mistério começou, o senhor Jardel só tinha a Bela e nenhum outro cavalo, e ela ficava sempre dentro do cercado.
Em algumas semanas ele me ligou todo feliz para contar que o Rambo (sempre tem um Rambo em cidade do interior), um cavalo fujão de dois sítios adiante, havia fugido de novo e estava trocando focinhadas com a Bela por cima da cerca e aí o mistério se resolveu, eis o pai vindo dar um oi para a namoradinha e perguntar se está tudo bem, e ninguém perguntou ou se perguntou como eles conseguiram esta façanha, mas é fato de que quando se quer transar uma cerca é o menor dos obstáculos e deve ter sido toda uma cena para lá de desastrada e romântica.
Onze meses depois recebi uma foto pelo email do Marcelo, filho do senhor Jardel: uma eguinha recém-nascida e já no segundo dia vivíssima e brincalhona e, ao mesmo tempo, mortinha da silva e estirada de cansaço, suja de terra e feno seco, e depois um telefonema explicando que não iriam poder ficar com ela devido ao espaço e dos custos.
Passaram-se duas ou três semanas e fomos lá visitar e conhecer a princesa com suas patas de meias brancas impecáveis e sem querer começamos a perguntar quanto custaria manter uma desgraçadinha destas e no outro dia voltamos com as contas feitas e um pool de (des)investimento com intenção de adotar e bancar a sugar baby por dois anos até ela ser alugada para passeios ou, pelo menos, a chance de ser adotada por outro vizinho da região.
Com espaço se dá um jeitinho e com os custos resolvidos a felicidade do velho fez ele cometer a burrice de deixar nós escolhermos o nome e assim adotamos a Sheila, a loira do Tchan, patricinha bunduda do interior e apelido Ju, de preju, e o jeito dela agradecer foi o mais especial de todos: apenas existindo, indiferente como uma Arauncária sem pinhas, com o seu olhar gordo e distante completamente alheia aos nossos problemas, dramas e frescuras e quando menos percebemos dois anos se passaram e a julgar pelo rebolado e a mania de jogar a crina para os lados do charme ao vento a puberdade da mocinha já estava chegando e a vigilância na cerca teve de ser reforçada para afastar Rambos, Norris e Xuarzenégers.
Cavalo é um bicho inútil demais, não late, não abana o rabo, não dá leite, não bota ovos e não vira bacon, não tem jeito de pegar no colo e como todo cavalo Sheila nasceu, ficou de pé, encarou e já saiu cambaleando forte e grandiosa como a vida deve ser e até agora só sabe encarar silenciosamente de longe, se aproximar quando quer, dar uns pinotes e umas sapateadas rápidas meio ragatanga, virar de bunda pedindo tapa e até hoje nenhum um único relinchado ou resmungo sequer e uma eterna expressão de satisfeita pós-almoço, pois só come do bom e do melhor: banana, maçã, milho, cenoura, pepino, toneladas de pasto criado solto, feno gourmet e sal de primeira linha.
E ainda usa nos cabelos xampu e condicionador mais chiques que o seu.
Apesar de aparentemente não servir de nada a sua existência é um sopro de alegria, mesmo quase sempre apenas em pensamentos e namorando à distância fotos e lembranças e a mudez dela já me fez até ter vontade de adotar um bezerro temperamental só para ouvir ele falar muuu ocasionalmente e poder chamar ele de Mood.
Pensa, um bezerro chamado Mood.
Como pode, quando nos conhecemos era uma recém-nascida, quando nos demos conta já era uma criança e agora uma aborrescente, mas assim é o ciclo dos cavalos e no interior todas as histórias, tretas e fofocas parecem sempre algum conto do Monteiro Lobato e neste caso um pouco de Nelson Rodrigues e Gabriel García Márquez, éguas engravidam misteriosamente, sitiantes descobrem olhando elas nos olhos e ainda personagens de nomes Bela, Rambo e Sheila e Rambos se fazem de Romeus e também uma mula sem cabeça como eu, que já me imaginei conversando com ela pelo Whatsapp, fofa do caralho.
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Na série Yellowstone a personagem Beth Dutton tem pavor de cavalos, justificável quando você conhece os motivos e inaceitável quando você lembra que ela é filha de um cowboy.
Em um dos vários momentos tristes e bonitos da série que ela mesma protagoniza, você não sabe se a personagem está tentando reaprender a cavalgar ou ensinando o cavalo para machucar ela.
Nem ela sabe e um dos empregados do rancho, Rip Wheeler, percebe a situação e então explica:
- Lembre-se, um cavalo consegue sentir uma mosca pousando nas costas, imagina o quanto ele não é capaz de sentir vindo de você. Cada emoção, cada pensamento, seus medos e vontades, o que você pensar você vai transmitir, e o que você transmitir ele vai sentir.
E logo depois ela segura as rédeas, ele diz para soltar e pergunta:
- Você não quer que ele confie em você? Você tem de confiar nele.
Talvez seja uma metáfora, Beth Dutton é selvagem e mulheres são como cavalos, e assim como cavalos são uma grande lição da natureza, o olhar diz tudo, a bunda tanto quanto, o silêncio mais ainda.
Discorda? Vamos aos fatos, você já viu o que acontece na natureza quando um cavalo (ou uma mulher) tem a petulância (ou a coragem) de olhar para você e jogar os cabelos sem tocar neles com as patas (ou mãos)?
Assunto encerrado.
E assim tal qual as mulheres se levam tapa na bunda voltam querendo mais, cavalos ensinam sobre consentimento e olhares sem precisar de palavras, afinal uma mulher consegue sentir uma vida se formando dentro dela, imagina o que ela não é capaz de sentir vindo de você.
The eyes Chico, they never lie.
Relações não precisam de rédeas, relações são sobre confiança e cavalos, ou mulheres, são antes de tudo uma lição da natureza, a charmosa indiferença silenciosa, presente e teimosa nas águas do Tietê, na sujeira dos ipês, na perenidade dos hissopos, no vento passeando pelos pinheiros, no olhar das Sheilas do universo.
Eu poderia falar também sobre o barulho dos cascos de um cavalo seguro de si aos passos, trotes, galopes e marchas e comparar com uma mulher de salto chegando na sua casa e... ah deixa para lá, a imaginação vai longe, culpa minha que dei nome de mulher para uma égua.
Segundo a lenda cavalos só namoram nas primaveras e pelo tempo de gestação nascem apenas nas primaveras também e duas primaveras depois já estão namorando novamente, podemos então concluir que cavalos são os animais mais floridos e perenes de todos.
Flores estranhas, expressam alegria se exibindo (assim como os ipês e hissopos) e correndo de você e te dando cabeçadas de surpresa quando você está de costas (ao contrário dos ipês e hissopos) e onde estiver um cavalo ele deixa o campo mais bonito (assim como os ipês e hissopos), se comunicam pelo olhar (ao contrário dos ipês e hissopos) e de forma silenciosa (como os ipês e hissopos).
Yellowstone também tem passagens sensacionais em diálogos algo bregas e pontuais, como quando os mesmos personagens se encontram em um bar e Rip comenta para Beth sem medo de ser feliz:
- Você fica bem na luz de neon.
E Beth responde perguntando da forma mais indiferente e orgulhosa, e tímida e recíproca possível:
- E quem não fica?
Tá aí, vamos colocar um neon no cantinho da Sheila, ela vai ficar bem, pois foi adotada para sempre e cuja vida alheia e indiferente me faz pensar nela com frequência.
Ela é um barato, ela é da pesada com o seu popô de 16 toneladas, Sheila é triunfal e desfila indiferente pela vida com os seus passos, trotes, galopes e marchas, e olha que ela nem sabe sambar.
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E por falar em fazer uma sujeira e serem lindas, indiferentes, perenes, teimosas e cheias de vida, lembrei dos seres mais insuportáveis deste planeta.
Elas mesmas, as margaridas.
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Cápsula do tempo.
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Está rolando um monte de guerra aqui e ali e mais um tanto se anunciando, mas quando não esteve?
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