Foto: Lucas Miró Horn
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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14/08/2024
MARGARIDAS
Complicadas e perfeitinhas.
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A minha geração cresceu lendo e assistindo Disney, mas como eu não tinha um rato para chamar de Mickey nem um pato para chamar de Donald (e Pateta não era um nome legal de cachorro), escolhi Pluto.
Nos quadrinhos e nos desenhos animados Donald, o pato, tinha uma namorada, a Margarida, quase tão temperamental quanto o penoso de voz rouca, mas a única capaz de manter ele na linha, complicada e perfeitinha, cheia dos caprichos e charmes.
Margarida era linda, sempre de laço na cabeça e usando uma brusinha da Shein com decote em V, salto alto e uma única pulseira de contas, a qual imaginava ser caríssima. Margarida também estava sempre de minissaia e suas cores favoritas eram roxo e rosa. Teimosa e mandona, inteligente e imaginativa, feminina e carinhosa, geniosa e briguenta enfim, a namoradinha ideal capaz de fazer qualquer um de pato.
Eu não sei e não consegui descobrir por qual motivo o cartunista e criador Carl Barks nomeou a sua personagem Margarida como Margarida, Daisy no inglês, mas tenho as minhas teorias.
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O Pluto tinha uma relação inédita com as margaridas do nosso quintal.
Nada escapava da sua ira canina, arrancava pés de couve, cavava berinjelas até elas perderem todas as raízes, fuçava os tomates até arrancar eles das plantas, atacava chuchus e chicórias, nabos e rabanetes, alfaces e rúculas, e se soubesse subir em árvores atacaria as maçãs também.
Mas as margaridas não.
Se aproximava, cheirava, andava no meio delas, contornava, cheirava de novo, abanava o rabo levemente, e deixava elas em paz.
A jardinagem é um ensinamento bruto sobre se nem tudo está ao seu alcance controlar, que você possa aprender a ter mais controle (ou não perder o controle) sobre o que está, um canteiro florido com as próprias mãos faz qualquer um renascer: jardins bem cuidados curam depressão, salvam casamentos, educam crianças, disciplinam adolescentes.
Ensinam sobre resistência, resiliência e perseverança e margaridas são uma pós-graduação sobre esforço e recompensa, você não faz a mínima ideia do que é lidar com a frustração até ter de aturar as margaridas, são as mais chatas, as mais frescas, birrentas e cheias de manias.
Se a Sheila é uma patricinha desengonçada, as margaridas são umas piranhas de salto alto, não sambam e nem comem fruta na palma da sua mão, mas tem de ter bebida que pisca, querem sempre mais potássio, mais fósforo, o melhor adubo e a melhor hora de sol, não muito mas também não pouco.
Não gostam de muito calor e também desgostam quando está frio, gostam de água e estão sempre com sede, mas o solo tem de drenar o excesso senão elas reclamam de bexiga cheia.
Elas são dualistas, bem-me-quer/mal-me-quer, yin/yang, animus/anima, querem sempre o melhor canto do jardim e alguém tem de levar elas até lá, porque sozinhas elas não vão, e ninguém reclama mais silenciosamente neste planeta que as margaridas; são teimosas e parecem viver com os braços cruzados de casaquinho reclamando do frio e o umbigo de fora reclamando do calor.
Mas quando decidem florescer fazem tudo valer à pena e o canto onde elas decidiram ficar vai ser sempre o mais bonito, e se você teve de levar elas até ali agora dali elas não saem e dali ninguém as tira, uma margarida murcha é sinal de algo errado, mas uma margarida exibida é uma certeza de coisas boas por si só.
Talvez o Pluto soubesse o quão guerreiras elas são, e quando morreu enterramos embaixo delas, mausoléu irônico de um vira-lata que cavou absolutamente tudo ao redor, menos ali.
O nome científico das margaridas é Leucanthemum vulgare, e apesar de "vulgare" no latim significar apenas "comum" elas não são vulgares nem comuns; margaridas são teimosas porque assim a vida exige e perenes quando querem (as suas flores aparecem duas vezes por ano, no verão e no outono), exibidas (assim como os cavalos, ipês e hissopos), não te dão cabeçadas de amor (como os cavalos) mas são cabeças-duras (como os cavalos) e onde estiver uma margarida ela deixa o campo mais bonito (como os cavalos, ipês e hissopos), não se comunicam pelo olhar (como os cavalos) mas ao contrário dos um tanto indiferentes ipês e hissopos de certa forma parecem te encarar de forma silenciosa (como os cavalos).
Margarida também vem do latim "margarita" e significa "pérola" e o nome Daisy do inglês vem de "Day's Eye" ou "olho do dia" porque, sim, quando anoitece elas se encolhem de frio (ou apenas para jogar um charme) e voltam a se exibir quando o sol nasce novamente.
O primeiro trabalho de Carl Barks foi ser jardineiro e ajudar na fazenda de seus pais ainda criança e provavelmente nesta época conheceu as margaridas, não sei se ele teve cachorros ou se conheceu algum cachorro que gostasse destas flores, mas um dos nomes populares nos Estados Unidos é Dog-Daisy (ou Margarida-Cachorro) então elas são vira-latas de jardim e talvez o Pluto, o meu Pluto, apenas reconhecesse elas como irmãs.
As mais famosas, as margaridas brancas, significam o amor, pureza, paz, inocência, juventude, criatividade, virgindade, sensibilidade e bondade; comuns iguais patricinhas em fila de balada e especiais quando você pede uma delas em namoro.
Complicadas e perfeitinhas e tal qual a jardinagem te ensina sobre estoicismo na prática, as margaridas são lições de vida, namoradinhas com cheiro de banho tomado, margaridas são triunfais.
Por falar em jardinagem e margaridas, lembrei de outra espécie de uma flor muito da bonitinha e a incrível relação dela com a capa de disco mais foda da história do Rock and Roll.
E se eu morrer amanhã, eu quero ser lembrado por este texto.
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