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ENSAIO 65: ZUGZWANG

Atualizado: há 2 dias



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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13/11/2024


ZUGZWANG


Porcos-espinhos, ouriços, palmitos e dilemas, tatuagens idiotas, cactos, abelhas e borboletas.


E dobro de queijo.


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Zugzwang é um termo no jogo de xadrez que descreve uma situação onde qualquer movimento realizado em qualquer direção o colocará em uma situação desfavorável, a origem vem da soma das palavras alemãs zug ("puxar") e zwang ("força" ou "coerção") pois de fato os jogadores de xadrez não podem deixar passar um movimento então se um deles estiver em zugzwang, provavelmente perderá o jogo.


Zugzwang também pode refletir a necessidade de se antecipar e evitar situações na vida as quais você precisa fazer uma escolha entre duas ou mais alternativas desfavoráveis e lhe restar apenas decidir qual será a menos problemática, não chega a ser exatamente um limbo (afinal você tem opções) mas dependendo das suas escolhas você mesmo pode se tornar desfavorável para os outros e colocar outras pessoas em situações onde elas mesmas não gostariam de estar ou, pior ainda, sem opção.


Mas esta expressão (e o querido baiacu de Darwin acostumado a fazer zugzwang no bucho de tubarões) me fez perceber existir um certo charme, e lições espinhosas, sobre espinhos.


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Mais ou menos uns seis meses antes de sermos assaltados e o 11 de Setembro tirar o meu protagonismo no assunto da semana, eu e a mesma namorada fomos para a fila dos ingressos no cinema do shopping e compramos para o filme Unbreakable (no Brasil: Corpo Fechado), o então esperado e muito comentado segundo filme do já famosíssimo diretor M. Night Shyamalan, após o sucesso da sua estreia na direção, O Sexto Sentido, em 1999.


Pegamos uma segunda fila, entramos na sala, as luzes se apagaram e apareceram na tela um casal de irmãos e um pai escalando uma montanha, felizes, radiantes e falantes até outros escaladores metros acima estragarem o dia e rapidamente a situação se tornar desesperadora, um zugzwang de vida ou morte, e a única solução para os irmãos sobreviverem era cortar a corda que sustentava o pai.


Para salvar a irmã e contra a sua vontade o irmão mais velho resolve este dilema na velocidade das situações limite, pegou o canivete, fez zugzwang zugzzugzwang na corda e o pai se estatelou lá embaixo no chão.


No exato segundo após a pancada eu disse rindo para a minha namorada:


- Cara, isto não é um corpo fechado.


E ela respondeu:


- Cara, este não é o corpo fechado.


E no exato segundo após ela falar isso apareceu na tela: VERTICAL LIMIT.


Entramos na sala errada e assistimos outro filme sem querer.


Saímos no fim e sem pensar compramos ingressos de novo para o mesmo Corpo Fechado, conferimos duas vezes a sala certa e então enfim assistimos o filme que queríamos ver.


Neste a abertura não mostrava dilema nenhum, apenas outra situação desesperadora onde um bebê já nasce com vários ossos quebrados e então vários dilemas de fato surgem na tela ao longo do filme, desde o personagem principal decidir esconder a aliança de casamento na presença de uma mulher jovem e bonita, até assumir uma posição a qual ninguém imaginava ser possível, a de um herói real que nunca se machuca.


No fim do dia adoramos ambos os filmes, talvez por orgulho, o Limite Vertical era bem bobinho mas nos divertimos.


Não era raro assistirmos dois filmes no mesmo dia mesmo em casa; íamos na locadora e eu escolhia um, ela queria outro, decidíamos no par ou ímpar e independentemente do resultado quem perdia pedia melhor de três, e se perdesse pedia de novo melhor de três desde o início e antes do dia acabar a decisão acabava sendo apenas qual filme ver primeiro.


Afinal eu queria ver o filme que ela queria ver, ela queria ver o filme que eu havia escolhido, ela era teimosa, eu era teimoso, geralmente a nossa teimosia somava.



A obra do teimoso filósofo alemão Arthur Schopenhauer é conhecida por não ser lá muito divertida, muitas vezes desesperadora e quase sempre dilemática mas nem por isso menos interessante, no seu último livro de ensaios ele narra a parábola do Dilema do Porco-Espinho, resumidamente assim:


"Em um dia gelado de inverno, diversos porcos-espinhos se amontoaram muito próximos para evitar o frio graças ao calor mútuo. Eles logo sentiram a dor causada pelos espinhos uns dos outros, e se separaram novamente. Mas a necessidade de calor voltou a uni-los e o recuo se repetiu, presos entre dois males até descobrirem a distância adequada na qual todos poderiam se beneficiar e se tolerar melhor."


Schopenhauer conta de forma um tanto direta e até infantil como as relações humanas oscilam entre a necessidade de companhia e o medo da dor na intimidade.


Entre o isolamento e o risco de nos ferirmos a vulnerabilidade aproxima e intensifica as conexões mas aumenta o risco de sofrimento e por isso adotamos socialmente a cortesia e os bons modos; criando uma distância segura onde o pouco calor gerado é, apesar de não satisfatório, mais conveniente e menos arriscado que a proximidade total.



Ouriços são menos problemáticos que seres humanos, filósofos alemães e porcos-espinhos mas pelo menos um, o meu favorito, é um tanto mais viajante.


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No curta-metragem Hedgehog in the Fog de 1975 do diretor russo Yuri Norstein, o Ouriço decide visitar seu amigo Filhote de Urso para um encontro especial, eles planejam tomar chá com geleia de framboesa e contar as estrelas juntos.


A jornada do Ouriço até a casa do amigo é cheia de mistérios, ele atravessa campos e matagais enquanto o cair da noite traz uma neblina densa ao longo do caminho, revelando imagens e presenças estranhas surgindo inesperadamente na névoa.


No início ele parece estar no caminho certo acompanhado por uma coruja o seguindo por alguns momentos quando se depara com a neblina e então se impressiona ao ver a silhueta de um cavalo branco, e a sua presença o faz perder o rumo.


Logo outros animais aparecem e se alternam, uma revoada de borboletas, um caracol parecendo se transformar em um elefante, um morcego naturalmente furtivo e novamente o cavalo branco, e mais uma vez desaparece na névoa.


Surge uma sombra enorme e se revela uma árvore gigante e oca mas desocupada, e então o Ouriço percebe ter perdido o seu pacote de geleia, entra em desespero e a névoa se torna escuridão até encontrar um vaga-lume no topo de uma flor, ilumina o seu caminho por alguns segundos até aparecer outro vaga-lume e ambos voam namorando e o abandonam; a escuridão retorna e com ela a reaparição dos animais, desta vez mais assustadores e ameaçadores, reais e imaginários.


Enquanto o Ouriço cai cansado e perdido surge um cachorro na névoa. Ele o cheira, encara, boceja e some.


E volta com o saco de geleia na boca, entrega, e some novamente.


Quando volta a caminhar o Ouriço ouve a voz do Filhote de Urso chamando-o através da névoa. Novamente animado apressa o passo e acaba caindo no rio, e em uma mistura de resignação e cansaço decide apenas deixar a água o levar, quando surge um peixe gigante escuro e misterioso para salvá-lo e o leva até a margem.


Finalmente consegue chegar à casa do Filhote de Urso, aliviado e pronto para aproveitar o chá e a sua companhia e enquanto o seu amigo fala o Ouriço está com a mente e o espírito longe e então o narrador conta que ele está pensando no cavalo, que então descobrimos ser uma égua, e se pergunta:


- Como ela está, lá... no nevoeiro?


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Existem muitas teorias, análises e estudos sobre os significados deste curta-metragem mas desde quando assisti pela primeira vez a minha interpretação inicial se mantém.


O ouriço certamente tinha uma rotina confortável, um ritual noturno com estrelas, chá, geleia e a companhia do seu amigo, mas fica intrigado com a visão de um cavalo e decide seguir a sua curiosidade mesmo adentrando uma névoa desconhecida aparentemente perigosa.


Ao longo do caminho algumas coisas assustadoras acontecem mas ele continua, em alguns momentos se sente perdido mas em outros entusiasmado e confiante, e quando finalmente retorna à sua rotina percebe ter mudado para sempre, e a curiosidade despertada nele no início fica ainda mais forte no final.


O Ouriço ouviu um chamado inesperado para seguir caminhos ainda não traçados nem iluminados, uma jornada onde não encontrou um arco-íris mas sim um cavalo, algo possivelmente nunca visto antes e cuja presença calma, estoica e intrigante o fez seguir mesmo sem saber o que mais encontraria pela frente; enfrentou e até mesmo se colocou em situações aparentemente sem saída, zugzwang pra cá e zugzwang pra lá, enfrentou o medo, o escuro, a incerteza e animais incapazer de representar um perigo real e quando enfim retornou percebeu em poucos segundos ter começado um dia normal com todas as respostas, atravessou a noite fazendo perguntas e, quando encontrou a rotina novamente, a madrugada o fez perceber a inquietude da sua mente e o desejo de continuar fazendo mais perguntas e experimentar a mesma sensação de novo.

A névoa e as aparições parecem ser, pura e simplesmente, as paisagens e interferências dos seus próprios pensamentos.


E provavelmente, um tico de LSD.



O início parece curioso e se torna assustador e o assustador fica familiar e claro, eu mesmo me pergunto todos os dias como a Sheila está lá pelas névoas de Urubici, com o seu olhar sempre concentrado e distante, sem dilemas e poucos espinhos para enfrentar e, muito menos ainda, perguntas.


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Uma outra namorada minha, mais recente, não sabia perder no par ou ímpar.


Um dia vi um meme que traduzia exatamente o meu pensamento sobre ela, uma imagem de uma pizza esburacada e ao lado pedaços de palmito, e a legenda era:


- Isto é uma pizza, eu gosto de pizza, os palmitos são as suas atitudes, eu não gosto de palmito.


Enviei para ela, e a resposta veio em milésimos de segundos:


- Nem começa, eu sempre coloco o dobro de queijo para compensar.


Ela estava certa, ouriça espinhosa mas de umbigo bonito, irritadiça mas cheirosa, embirrada mas sempre espirituosa, tentando compensar a hiperatividade mental inventando motivos para brigar e nas horas vagas fazendo seguidas tatuagens imbecis e aleatórias como cactos, abelhas, borboletas e um Ás de Copas tão ou mais aleatório quanto o significado pensado por ela:


- Representa força.


Não posso tirar a razão dela, no poker por exemplo Ás de Copas é a maior carta de todas, com poder de reverter qualquer possível zugzwang.


E cactos são legais, flores são lindas mas cactos duram mais, um dilema autosolucionável.


Um cacto é a prova do quanto o respeito e o distanciamento certos são mais importantes que o amor, o cacto é uma base sólida, resiliente e teimosa capaz de permitir e sustentar uma flor no seu devido lugar.


É uma lição espinhosa, sem respeito o amor não passa de uma flor de plástico, pode até ser duradoura, mas muitas relações falsas duram eternamente. Flores falsas não polinizam e sequer atraem abelhas, seres cuja vida depende de um dilema máximo, uma única decisão de ferroar põe fim em si mesmas, mal do qual as borboletas não sofrem, seres estranhos de vida dupla.


Parecem aquela menina gótica que ninguém se importava no ensino médio e agora ninguém consegue tirar os olhos, uma feiosa fase larval e então uma criatura quase angelical mas ainda de meia arrastão, intercalada por uma fase obscura responsável pela metamorfose: o casulo parece um prenúncio de uma ameaça monstruosa capaz de crescer absurdamente e destruir e devorar tudo pelo caminho até ser derrotado pelo Exército dos Estados Unidos mas não, nasce provavelmente a criatura mais leve e gentil a qual a natureza já teve a pachorra de criar.


Tão leve e tão gentil ao ponto de você nunca ter reparado o quanto borboletas são caóticas e anti-sociais, quando ela levanta voo você não sabe para qual lado ela irá, qual rumo irá tomar, e nem mesmo se realmente voará ou apenas pousar novamente dois centímetros à frente mas (ao contrário da ansiedade das mariposas e a arrogância das baratas) borboletas parecem apenas dizer: eu não sei o que eu vou fazer, você não sabe o que eu vou fazer, mas está tudo bem.


Não à toa uma das teorias sobre o caos chama-se justamente Efeito Borboleta, um simples bater de asas capaz de gerar um lento efeito-cascata e causar modificações irreversíveis em outro lugar do planeta mas, eu não sei quais modificações irreversíveis serão, você não sabe quais modificações irreversíveis serão mas está tudo bem, borboletas são lindas e é tudo o que precisamos saber sobre elas.


Ainda bem, sem corpo fechado neste mundo de porcos-espinhos, ouriços, palmitos, dilemas, mulheres com tatuagens idiotas, cactos, abelhas e borboletas, temos de aprender a nos adaptar e, se possível, em alguns momentos o melhor a se fazer é apenas nada.


Ou colocar o dobro de queijo para compensar.



E agora, neste exato momento, pensei em montar uma banda chamada Zugzwang, por instinto procurei no YouTube e já existe. Uma porcaria aliás, o vocalista inclusive parece estar cantando com um espinho na garganta.



Mas por falar em filmes de locadora e situações sem saída o meu curta-metragem favorito da vida é resumidamente um ouriço perdido em um nevoeiro, mas e se eu te falar sobre uma situação nebulosa e um espinho que demorou décadas para ser removido e só não enxergou ele quem não quis?


O meu filme favorito da vida traz esta nostalgia de um tempo que não se rebobina mais e a história conta exatamente um destes momentos onde escolhas definem o futuro, e as consequências destas redefinem o passado.


E não é o Tenet.


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Em tempo, das 21 mil espécies de abelhas existentes no mundo apenas oito morrem na sua ferroada kamikaze, então escrevi um falso dilema apenas para preencher um parágrafo, no mínimo fraco tecnicamente.


E eu sei, você está se perguntando como alguém consegue comprar ingressos para um filme em uma sala e entrar em outra sala mas isto foi décadas atrás, num tempo sem QR Code, nem ingressos online, nem mesmo smartphone, era um mundo cruel e espinhoso, mas muito mais divertido.


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Cápsulas espinhosas do tempo.


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Donald Trump venceu as eleições para presidente nos Estados Unidos.

Make America Zugzwang Again.


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Morreu o produtor musical, compositor, arranjador, maestro, trompetista e mestre em fazer zugzwang em nossos corações, Quincy Jones.


Simplesmente o maior de todos, fará muita falta mas nos deixou muita música para alegrarmos o resto das nossas vidas.


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O Tribunal de Contas da União (TCU) contratou um salão de beleza para operar nas dependências de sua sede em Brasília. Localizado no mezanino do órgão, o estabelecimento prestava uma série de tratamentos que incluíam massagem relaxante e até depilação íntima no contorno do zugzwang.


Ministros e servidores do órgão tinham acesso aos serviços prestados pelo SPA durante expediente de trabalho.


Com um contrato para funcionar até 2029, tendo possibilidade de estender para 2034, um corte de cabelo no local custava R$ 86,26 e as "massagens relaxantes" custavam R$ 115 e depilação íntima do contorno R$ 80,75.


Todos os serviços estavam previstos no edital assinado entre o TCU e a empresa contratada. As informações foram reveladas pelo colunista Cláudio Humberto, do jornal Diário do Poder.


De acordo com o jornalista, o contrato previa uma taxa de uso de R$ 2,8 mil, com despesas como água, luz, limpeza e segurança já inclusos no valor.


Segundo o colunista, estimativa é que o SPA faturasse cerca de R$ 127 mil por mês para atender os trabalhadores do Tribunal de Contas da União.


Após as denúncias cabeludas o contrato foi suspenso.


Sim, o órgão responsável pelos gastos que o governo faz com o seu dinheiro tira do TeuCU sem cera para depilar o cu do TCU.


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