ENSAIO 75: HÚBRIS
- LFMontag
- 16 de abr.
- 7 min de leitura
Atualizado: há 5 dias

Foto: Robson Ramon
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
--
09/04/2025
HÚBRIS
Um par de tênis, um par de chifres, dois Kurtz.
--
Na cena mais triste e assustadora do documentário Notícias de uma Guerra Particular de 1999 (dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund) um preso dá a seguinte declaração:
- Se eu tiver que matar pra roubar pra comprar um tênis Mizuno, eu vou matar pra roubar pra comprar um tênis Mizuno.
--
No episódio The Primal Theory, o único com diálogos da sensacional série animada Primal, Charles Darwin em 1890 em plena Inglaterra vitoriana tenta sem sucesso defender sua teoria da evolução para seus colegas cientistas CD Darlington, Blakely, Bertie e Giroud.
Charles supõe e insiste que na situação certa qualquer pessoa regrediria às suas raízes primitivas para sobreviver, e Darlington descarta essa teoria como loucura.
A noite é interrompida quando um interno fugitivo de um asilo próximo invade a casa, mata o mordomo e começa a atacar todas as pessoas lá dentro incluindo Giroud e Bertie, os três sobreviventes correm e pegam armas da coleção de Darlington, Blakely é nocauteado pelo louco que persegue Charles e Darlington até a estufa, os domina e tenta canibalizar Charles.
Num acesso de fúria primitiva, Darlington ataca e mata o prisioneiro com um osso enorme e uma lança e quando recupera os sentidos olha para um Charles ferido e sem fôlego, satisfeito por ter sobrevivido e conseguir, muito involuntariamente, provar a sua teoria.
--
A Húbris (ou hybris, a personificação da insolência na mitologia original) entrou para a cultura não como um deus ou semi-deus, nem mesmo um mortal, mas como um estado situacional; é um conceito clássico da tragédia grega para descrever o comportamento de personagens que, tomados por arrogância extrema, insolência ou orgulho excessivo (ou ainda, autoconfiança e ambição desmedidas), promovem o ultraje, desafiando as normas divinas e morais dos deuses, transgredindo a ordem natural das coisas.
Dos exemplos mais conhecidos na mitologia temos o Ícaro ao fugir com suas asas de cera criadas por seu pai Dédalo e, desobedecendo a advertência de não voar muito alto se aproxima demais do sol; e Prometeu, que ao desafiar a autoridade divina para beneficiar os humanos, rouba o fogo dos deuses e o entrega à humanidade.
Na tradição cristã temos Lúcifer, descrito como um anjo de extrema beleza e poder e que por orgulho quis se igualar a deus, e os próprios humanos quando construíram uma torre para tentar alcançar o céu e se aproximar do criador.
--
Existem dois Kurtz, mas ambos representam o mesmo.
O enredo do livro No Coração das Trevas do escritor Joseph Conrad e publicado em 1899, acompanha a jornada do marinheiro britânico Charles Marlow pelo Rio Congo, na África, em busca de um enigmático comerciante de marfim chamado Sr. Kurtz.
A história é contada através de uma narrativa dentro de outra narrativa, onde Marlow relata suas experiências aos colegas a bordo de um navio ancorado no rio Tâmisa e ao longo da jornada presencia o impacto brutal do imperialismo europeu sobre os povos africanos, assim como a degradação moral dos homens que se aventuram em ambientes onde a civilização ocidental não tem controle.
Kurtz é inicialmente descrito como um idealista, um homem antes brilhante e promissor de formação europeia refinada, eloquente, idealista e crente dos valores do progresso e da civilização, sendo enviado para a África coletar marfim e supostamente levar a luz da Europa aos ditos selvagens (um exemplo utópico do colonialismo bem-sucedido) mas vai se revelando uma figura perturbadora completamente corrompida pelo poder e isolamento.
Na versão do filme Apocalypse Now do diretor Francis Ford Coppola em 1979, o enredo é modificado para o contexto da Guerra do Vietnã onde o capitão Benjamin Willard é encarregado de uma missão secreta: atravessar o rio Nùng para encontrar e eliminar o coronel Walter Kurtz, um oficial enlouquecido comandando um culto violento nas selvas do Camboja.
Esse Kurtz também começa como um homem de excelência: militar condecorado, inteligente e de futuro promissor no exército americano, respeitado por sua mente estratégica e visão de guerra, um símbolo da disciplina e da moral do exército (cuja ideologia acredita poder vencer a guerra com estratégias eficazes e humanas), e então se torna uma figura tomada por uma filosofia profunda e sombria e de personalidade ameaçadora e imprevisível.
A viagem pelo rio se transforma em uma descida infernal revelando os horrores da guerra, o caos da intervenção americana no Vietnã e os limites da sanidade humana e, assim como no livro, Kurtz simboliza o colapso da razão, revelando a selvageria do mundo à margem da ordem, fora da vigilância da sociedade urbana ocidental.
Quando Marlow/Willard finalmente o encontra, o comerciante/coronel Kurtz está numa espiral total de loucura e delírio messiânico, completamente transformado e isolado no meio da selva; um tirano com delírios de divindade cometendo atos brutais em nome de uma lógica própria e que rejeitou toda a doutrina colonial/militar, passando a agir segundo sua própria noção de ordem baseada na sobrevivência pura e na aceitação do caos social primitivo, cercado por rituais tribais e cabeças empaladas e adorado de forma quase religiosa por parte dos nativos.
A selva, o poder absoluto e a ausência de limites morais o corroeram, e a sua famosa frase final, "O horror! O horror!", resume sua então tomada de consciência (ou desespero) diante do abismo que se tornou a sua alma, ambos começam como símbolos absolutos do homem civilizado e acabam se tornando reflexos do lado mais sombrio da humanidade e a selva (tanto na África quanto no Vietnã) funciona como um espelho do inconsciente — e o rio como um vetor por onde o primitivo e brutal emergem.
--
Em outra passagem do documentário Notícias de uma Guerra Particular um delegado de nome Hélio Luz conta sobre uma transferência de localidade, quando ele e uma equipe foram deslocados para uma cidade menor e tentar controlar a escalada de violência na região.
Logo nos dois primeiro meses a equipe conseguiu fechar uma boca de fumo e diminuir os assaltos mas, no terceiro mês, prenderam um moleque roubando no supermercado e também o segurança que o agrediu até a chegada da polícia e na mesma semana prenderam um agricultor que havia assassinado outro ladrão, ambas as situações sob protestos dos cidadãos e administração local.
Hélio então pergunta (não tão) retoricamente:
- Há interesse na sociedade em ter uma polícia que não seja corrupta? Porque se esse for interesse ninguém mais vai estacionar em cima da calçada, a mesma polícia que entra na favela vai entrar no Leblon e todo mundo vai ter de responder pelas mesmas leis e regras.
--
Se húbris é o excesso, o desrespeito e a arrogância, a Nêmesis é a justiça, a correção, a queda que vem como resposta.
O nome vem da raiz grega némein, e significa algo como “distribuir o devido”, a punição inevitável na exata proporção e dependendo do desequilíbrio originalmente causado, uma espécie de balança do universo: se alguém sobe demais, ela puxa de volta para a realidade ou em outras palavras, quem comete húbris, colhe a queda.
De acordo com o princípio a nêmesis não é uma forma de vingança e não se move por raiva, mas por equilíbrio cósmico.
Ícaro se aproximar do domínio dos deuses, o céu, e tem suas asas derretidas, caindo no mar e morrendo; Prometeu rouba o fogo e mesmo sendo bem-intencionado acaba ultrapassando o limite do conhecimento imposto pelos deuses, então é punido com uma eternidade de sofrimento.
Lúcifer é lançado do céu e se torna Satanás, ecoando o padrão clássico da elevação orgulhosa seguida de queda trágica; Deus vê a Torre de Babel como um ato de arrogância dos seres humanos e confunde suas línguas, fracassando a conclusão do projeto.

Em comum o tema central do orgulho tentando romper os limites impostos pela divindade dominante mas note também que em todos os exemplos citados a história foi contada por quem já dominava não só o além e o mundo mas também a narrativa, então fico em dúvida se a húbris é um estado selvagem ou uma reação pensada mas apenas mal calculada.
Acho que a resposta está nela, ela mesma, a empatia de novo.
--
Cápsulas apocalíticas do tempo.
--
Um mulher de 33 anos fugiu de uma clínica médica após fazer uma lipoaspiração e colocar prótese mamária, no bairro Cidade Jardim, na região Centro-Sul de Belo Horizonte.
De acordo com a polícia, a paciente saiu da unidade sem pagar e ainda usava acesso venoso e a direção da clínica contou que após uma cirurgia bem-sucedida, a paciente voltou para o quarto acompanhada por uma enfermeira e logo após o acompanhante dela chegou no quarto e dispensou a profissional que estava no local.
Cerca de 30 minutos depois, a dupla foi para a praça de alimentação e em seguida foram embora da clínica usando a identificação facial.
Isso nos dá três lições:
- A comida mineira continua imbatível.
- Criminosas peitudas é um fetiche por excelência.
- Se ela podia fugir desse jeito ela era plenamente capaz de caprichar mais na academia e economizar nas plásticas.
--
Por falar em fugir, lembra daquelas pessoas que te deram dor de cabeça na vida?
Que não cumprem prazo, não corrigem o que fizeram de errado, reclamam no valor baixo que elas mesmas cobraram?
A inteligência artificial já desempregou elas.
A nova lei da robótica é a lei do retorno.
--
A Justiça do Trabalho condenou o banco Itaú a pagar uma indenização por danos morais de R$ 10 mil para um ex-funcionário que disse ter sido obrigado, com alguns colegas, a fazer uma dancinha para postar nas redes sociais.
Não sei o que dizer isso, dancinhas são dancinhas mas dez mil é dez mil.
--
Ah, o Donald Trump tá taxando todo mundo, todo mundo tá reclamando, alguns taxando de volta, não estou entendendo nada, dancinhas são dancinhas mas juros são juros.
--
Comments