ENSAIO 78: JAMES BOND
- LFMontag
- 6 de mai.
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Atualizado: há 12 minutos

Foto: Robson Ramon
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
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21/05/2025
JAMES BOND
Pontapés, tapas e rasteiras, e piadas tão doídas quanto.
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Arnaldo não sabia apenas mais sobre Ulysses que eu, ele também era bom em pontapés, tapas e rasteiras, e piadas tão doídas quanto.
Em algum momento da vida foi apelidado de corvo por um pai de santo, porque ele era negro e parecia ter os braços mais compridos que as pernas e quando encontrei ele pela primeira vez o seu convite foi irresistível:
- Vai cagar ou desocupar a moita?
Resolvi desocupar, eu já estava há umas três semanas indo na frente do ginásio e ficava lá fora olhando e ouvindo berimbau.
E algo muito estranho acontece quando você ouve um berimbau e então resolvi desocupar a moita, entrar no ginásio e aprender capoeira e então conhecer uma das pessoas mais ácidas, bem-humoradas e fortes que já conheci na vida, negro e comprido como um corvo, e assinava Korvo com K.
A primeira vez que tive um pouco da noção do que é ser negro neste país eu entrei na Caixa Econômica Federal com ele, e ao passar naquela porta giratória dos desesperados o alarme disparou, eu estava com as chaves de casa e um canivete no bolso, por vergonha deixei apenas as chaves na gaveta da porta, o alarme disparou de novo e o guarda me liberou, o Korvo sem nada nem alarme apitando, foi parado pelo mesmo guarda e revistado.
O guarda era negro.
Quando fomos falar com a gerente, ela olhou apenas para mim, e quando disse que era ele quem abriria uma conta, ela concordou sorrindo, apenas para mim.
Quando fomos embora o Korvo não tinha nenhuma alteração de humor, pelo contrário, parecia mais bem-humorado ainda e começou a falar:
- Pra você ver né Luiz, tratam a gente igual bicho, o guarda é preto e se sente menos bicho tratando outro preto como bicho, parece até a piada da arara no ombro.
Então eu perguntei:
- Qual piada?
E ele: Um preto estava andando com uma arara no ombro na beira da praia, uma loira chegou perto dele e perguntou "que bicho lindo, onde você achou?", e a arara respondeu "na África!".
Enquanto eu ainda gargalhava, ele não perdeu o fio e disse:
- Podia ser um corvo no ombro de um corvo.
Assim era o Korvo, sempre agudo e de mente ágil como um detetive, um corvo bom de pontapés, tapas e rasteiras, retóricas ou não.
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Três personagens de ficção e um real.
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O detetive Sherlock Holmes surgiu pela primeira vez em 1887 criado pelo escritor britânico Sir Arthur Conan Doyle, no romance "Um Estudo em Vermelho".
Inspirado no famoso médico Joseph Bell, que usava dedução lógica para diagnosticar pacientes, Holmes se tornou o detetive mais famoso da literatura mundial, descrito como um homem branco alto e magro E nariz aquilino, olhos penetrantes claros e de expressão fria e observadora; um gênio da dedução, mestre dos disfarces, toca violino, pratica boxe e conhece profundamente química, balística e análise forense.
Emocionalmente distante e arrogante, mas extremamente leal ao seu amigo, John Watson, o narrador quase todas as histórias e um contraponto mais humano ao intelecto frio de Holmes.
No cinema o personagem já foi interpretado por diversos atores durante décadas como Basil Rathbone (considerado o Sherlock definitivo, o qual interpretou nos anos 1930 e 1940); Peter Cushing; Christopher Lee; Robert Stephens; Nicol Williamson; Michael Caine; Rupert Everett; e mais recentemente, Robert Downey Jr. em uma versão mais ação que suspense.
Além do cinema, Sherlock Holmes também teve interpretações na televisão como Jeremy Brett no Reino Unido e Benedict Cumberbatch e se consolidou como um dos personagens mais adaptados de todos os tempos, e sua influência continua presente na cultura popular e na forma como imaginamos o trabalho investigativo e dedutivo de detetives e espiões, policiais e criminosos e até mesmo jornalistas.
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Décadas depois, em 1953, nascia o espião James Bond, também conhecido como 007, personagem criado pelo escritor também britânico Ian Fleming.
O nome James Bond foi inspirado em um ornitólogo, autor de um livro que Fleming tinha em casa e sua primeira aparição foi no livro "Casino Royale", onde é apresentado como um agente do Serviço Secreto Britânico (MI6) e de código 007, o seu status como agente com permissão oficial para matar em nome da coroa britânica, a famosa licença para matar.
Bond é descrito como tendo cerca de 1,83 m, pele branca e cabelos escuros, olhos frios e azuis e uma cicatriz fina no rosto; é elegante, inteligente, letal e aprecia bebidas como o martini (batido, não mexido), além de carros de luxo, armas modernas e mulheres sedutoras.
A franquia é uma das mais duradouras e influentes da história da literatura e do cinema de espionagem e sempre combinando ação, intriga internacional e tecnologia, uma fórmula presente em outras franquias de peso como Identidade Bourne e Missão Impossível.
Nos cinemas James Bond estreou em 1962 no filme "Dr. No", interpretado por Sean Connery e desde então, o personagem também foi vivido por diversos outros atores: George Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton, Pierce Brosnan, Daniel Craig e mais recentemente Aaron Taylor-Johnson, possivelmente escolhido para os próximos filmes, apesar muitos sugerirem o ator Idris Elba como o primeiro Bond negro da história.
Após a morte de Ian Fleming, outros escritores deram continuidade às histórias, mantendo viva a figura de Bond através de décadas de transformações culturais e tecnológicas.
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Enquanto Holmes e Bond já estavam consolidados, surgiu John Shaft, protagonista do filme Shaft de 1971 e dirigido por Gordon Parks, o primeiro detetive negro em um grande filme comercial e de um diretor negro contratado por um grande estúdio de Hollywood.
Shaft é um detetive particular, durão, carismático e estiloso e transita entre os mundos branco e negro enfrentando mafiosos e corruptos e o personagem foi interpretado originalmente por Richard Roundtree, cuja performance e presença transformaram o filme num ícone cultural.
A trilha sonora composta por Isaac Hayes, especialmente a música tema "Theme from Shaft", foi um sucesso estrondoso e venceu o Oscar de Melhor Canção Original.
O filme foi produzido com orçamento modesto, faturou milhões nas bilheteiras e ajudou a salvar financeiramente o estúdio MGM e também deu origem a uma franquia, com Richard Roundtree mantendo seu papel, e o personagem foi revivido em 2000 com Samuel L. Jackson interpretando o sobrinho do Shaft original, em um filme que também contou com Roundtree como o tio.
Em 2019, um novo longa trouxe os dois de volta mais o ator Jessie T. Usher como o neto de Shaft, mostrando três gerações do personagem, e manteve o símbolo da força e resistência negra na cultura pop americana, na época chamada de Blaxploitation, a junção de “black” (preto) e “exploitation” (exploração), filmes feitos majoritariamente por e para o público negro, explorando temas urbanos com protagonistas negros em papéis de destaque, muitas vezes como heróis fortes, rebeldes e independentes.
Esses filmes romperam com muitos dos estereótipos de submissão negra predominante em Hollywood até então e misturavam ação, crime, sexualidade, música funk e soul, e cenários das periferias urbanas e, apesar das críticas por perpetuar e reforçar certas caricaturas como gírias e vestimentas, o movimento foi importante para a afirmação da identidade negra no cinema.
Shaft também influenciou gerações posteriores e até diretores brancos, sendo o mais notório deles Quentin Tarantino, cujo filme Jackie Brown, além do meu favorito, é uma aberta homenagem ao período e atores da Blaxploitation original, principalmente por incluir a Pam Grier no papel principal e rainha absoluta em dezenas de filmes de ação, romance e suspense na década de 70.
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Enquanto o Império Britânico vivia o seu auge e estava em pleno vapor (me perdoe, mas vou manter) na era da revolução industrial, o Brasil estava patinando entre ser um país de escravos ou de cidadãos livres.
E Zumbi dos Palmares...
(A revisão acaba aqui, mais um bloqueio, e uma coincidência terrível, segunda-feira cheguei de São Paulo e se eu chego em casa eu caio na cama e durmo, então decidi sair caminhar e colar uns adesivos na rua quando encontrei um amigo em comum do Arnaldo e soube que ele está desaparecido, do alcoolismo adquirido no terreiro de candomblé passou para a cocaína e agora está possivelmente usando crack, a última vez em que foi visto estava tentando roubar comida na universidade onde trabalhamos.)

Deixo aqui apenas a conclusão original deste ensaio e quem voltar aqui no futuro encontrará os motivos pelos quais ele foi tão importante na minha vida.
Arnaldo nunca se abalava, como já sabemos, e muito antes de Idris Elba ele mesmo já havia sugerido ser o próximo James Bond, quando sugeriu inclusive mudar de nome:
- Sabe Luiz, esse lance de 007 já tá enjoado, branco voa, salta, capota e o cabelo não desmancha, podia ser um negão chamado Bola Oito e quando ele se apresentasse ele diria:
- Meu nome é Oito, Bola Oito.
Korvo, o nosso Sherlock, o nosso Bond, o nosso Shaft.
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Cápsula da temperança do tempo.
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Índia e Paquistão entraram em guerra e aí o Talibã apareceu na mídia e pediu moderação.
Imagina o Talibã chegar na ONU e mandar um: gente, vocês não são mais crianças
E aí começar um discurso mandando palavras inúteis tipo paradoxos e paradigmas globais.
Quando os destemperados pedem temperança, eu me pergunto em que mundo perigoso estamos entrando.
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